sexta-feira, 31 de julho de 2015

Os Passos Perdidos no 31. Alejo Carpentier. «A selva era o mundo da mentira, da armadilha e do falso semblante: ali tudo era disfarce, estratagema, jogo de aparências, metamorfoses. Mundo do lagarto-cogombro, de castanha-ouriço, da crisálida-centopeia e do peixe eléctrico que fulminava desde a quietude das linhaças». Para sempre cdu…

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«Há quatro anos e sete meses que eu não via a casa de colunas brancas, com o seu frontão ornado de carrancudas molduras, que lhe dava um ar austero de palácio de justiça, e agora, perante móveis e velhos trastes colocados nos mesmos lugares tinha a quase penosa sensação de que o tempo regredira. A mesma cortina cor de vinho, a mesma gaiola vazia, a mesma roseira a trepar pela parede. Mais além, estavam os ulmeiros que eu ajudara a plantar nos dias de grande euforia, quando todos nós colaborávamos na obra comum; junto ao tronco envelhecido, o banco de pedra que fiz ressoar como madeira, com o bater dos meus tacões. Por detrás, o caminho para o rio, com as suas magnólias anãs, e o gradeamento de intrincados arabescos à maneira de Nova Orleães. Como na primeira noite, andei pelo átrio, ouvindo a mesma ressonância oca sob os meus passos e atravessei o jardim para chegar mais rapidamente ao local onde se moviam, em grupos, os escravos marcados a ferro, as amazonas de saias enroladas no braço e os soldados feridos, esfarrapados, com ligaduras mal atadas, aguardando a sua hora no meio de sombras tenebrosas, fedendo a betume, a feltros velhos, a suores acumulados nas mesmas labitas. Saí a tempo da zona iluminada, quando o disparo do caçador se fez ouvir e um pássaro tombou no palco do segundo terço de bambolinas. A crinolina de minha mulher voou por cima da minha cabeça, pois encontrava-me precisamente no sítio por onde ela entrava em cena, estorvando-lhe a passagem já de si estreita. Por ser menos penoso, dirigi-me ao seu camarim, e aí tomei consciência do tempo: tudo demonstrava claramente que quatro anos e sete meses não se passavam sem desgastar, desluzir e murchar. As rendas dos remates estavam ruças; o cetim negro da cena do baile perdera a bela rigidez que o fizera ranger em cada reverência, como um revolutear de folhas secas. Até as paredes do aposento se tinham deteriorado, por serem sempre tocadas nos mesmos sítios, mostrando assim as marcas da sua longa convivência com os cosméticos, as flores retardadas e os trajes da fantasia. Sentado agora no divã, que de verde-mar passara a verde-cinza, consternara-me pensar quão dura se tornara, para Ruth, essa prisão de tábuas e artifícios, com suas pontes volantes, suas teias de cordel, suas árvores pintadas. Na altura da estreia dessa tragédia da Guerra da Secessão, quando nos tocou a nós ajudar o jovem autor, servido por uma companhia recém-saída de um teatro experimental, entrevíamos no máximo uma aventura de vinte noites. No entanto, atingimos as mil e quinhentas representações, sem que as personagens, ligadas por contratos sempre prorrogáveis, tivessem alguma possibilidade de se evadir da acção depois que os empresários, utilizando o generoso ardor da juventude em proveito dos seus grandes negócios, receberam a obra na sua sociedade. Assim, para Ruth, longe de ser uma porta aberta sobre o vasto mundo do Drama, uma forma de evasão, este teatro era a Ilha do Diabo. Suas breves fugas, quando se permitia tomar parte em espectáculos de beneficência, sob o penteado de Pórcia ou a túnica de alguma Ifigénia, não lhe traziam grande alívio, pois por debaixo de um vestido diferente os espectadores procuravam a rotineira crinolina, e na voz que pretendia ser a de Antígona, todos encontravam as inflexões de contralto da Arabela, que agora no palco aprendia com Booth, numa situação que os críticos tinham por prodigiosamente inteligente, a pronunciar correctamente o latim, repetindo a frase: Sic semper lyrannis. Seria necessário, no entanto, ter o génio de uma trágica ímpar para se libertar desse parasita que se alimentava do seu sangue; daquela hóspede de seu próprio corpo, incrustada em sua carne como um mal sem remédio. A vontade de romper com o contrato não lhe faltava. Porém, essas revoltas pagavam-se, no ofício, com um longo desemprego, e Ruth, que começara a dizer o texto com a idade de trinta anos, via-se chegada aos trinta e cinco, repetindo os mesmos gestos, as mesmas palavras, todas as noites da semana, todas as tardes de domingo, sábados e dias feriados, sem contar com os espectáculos das digressões estivais. O sucesso da obra aniquilava lentamente os seus intérpretes, que iam envelhecendo à custa do público de dentro de suas roupas imutáveis, e quando um deles morrera de enfarte, certa noite, pouco depois de cair o pano, a companhia, reunida no cemitério na manhã seguinte, exibira, talvez, sem se dar conta, uma aparatosa roupa de luto que mais fazia lembrar um daguerreótipo. Cada vez mais desgostosa, menos esperançada em atingir uma carreira que, apesar de tudo, amava por profundo instinto, a minha mulher deixava-se arrastar pelo automatismo do trabalho imposto, como eu me deixava arrastar pelo automatismo da minha profissão». In Alejo Carpentier, Os Passos Perdidos, 2008, tradução de António Santos, Saída de Emergência, 2010,m ISBN 978-989-637-244-6.

Cortesia de SEmergência/JDACT