«Há quatro anos e sete meses que
eu não via a casa de colunas brancas, com o seu frontão ornado de carrancudas molduras,
que lhe dava um ar austero de palácio de justiça, e agora, perante móveis e velhos
trastes colocados nos mesmos lugares tinha a quase penosa sensação de que o tempo
regredira. A mesma cortina cor de vinho, a mesma gaiola vazia, a mesma roseira a
trepar pela parede. Mais além, estavam os ulmeiros que eu ajudara a plantar nos
dias de grande euforia, quando todos nós colaborávamos na obra comum; junto ao tronco
envelhecido, o banco de pedra que fiz ressoar como madeira, com o bater dos
meus tacões. Por detrás, o caminho para o rio, com as suas magnólias anãs, e o gradeamento
de intrincados arabescos à maneira de Nova Orleães. Como na primeira noite, andei
pelo átrio, ouvindo a mesma ressonância oca sob os meus passos e atravessei o jardim
para chegar mais rapidamente ao local onde se moviam, em grupos, os escravos marcados
a ferro, as amazonas de saias enroladas no braço e os soldados feridos, esfarrapados,
com ligaduras mal atadas, aguardando a sua hora no meio de sombras tenebrosas, fedendo
a betume, a feltros velhos, a suores acumulados nas mesmas labitas. Saí a tempo
da zona iluminada, quando o disparo do caçador se fez ouvir e um pássaro tombou
no palco do segundo terço de bambolinas. A crinolina de minha mulher voou por cima
da minha cabeça, pois encontrava-me precisamente no sítio por onde ela entrava
em cena, estorvando-lhe a passagem já de si estreita. Por ser menos penoso, dirigi-me
ao seu camarim, e aí tomei consciência do tempo: tudo demonstrava claramente que
quatro anos e sete meses não se passavam sem desgastar, desluzir e murchar. As rendas
dos remates estavam ruças; o cetim negro da cena do baile perdera a bela rigidez
que o fizera ranger em cada reverência, como um revolutear de folhas secas. Até
as paredes do aposento se tinham deteriorado, por serem sempre tocadas nos
mesmos sítios, mostrando assim as marcas da sua longa convivência com os cosméticos,
as flores retardadas e os trajes da fantasia. Sentado agora no divã, que de verde-mar
passara a verde-cinza, consternara-me pensar quão dura se tornara, para Ruth, essa
prisão de tábuas e artifícios, com suas pontes volantes, suas teias de cordel, suas
árvores pintadas. Na altura da estreia dessa tragédia da Guerra da Secessão,
quando nos tocou a nós ajudar o jovem autor, servido por uma companhia recém-saída
de um teatro experimental, entrevíamos no máximo uma aventura de vinte noites. No
entanto, atingimos as mil e quinhentas representações, sem que as personagens, ligadas
por contratos sempre prorrogáveis, tivessem alguma possibilidade de se evadir
da acção depois que os empresários, utilizando o generoso ardor da juventude em
proveito dos seus grandes negócios, receberam a obra na sua sociedade. Assim, para
Ruth, longe de ser uma porta aberta sobre o vasto mundo do Drama, uma forma de evasão,
este teatro era a Ilha do Diabo. Suas breves fugas, quando se permitia tomar
parte em espectáculos de beneficência, sob o penteado de Pórcia ou a túnica de alguma
Ifigénia, não lhe traziam grande alívio, pois por debaixo de um vestido diferente
os espectadores procuravam a rotineira crinolina, e na voz que pretendia ser a de
Antígona, todos encontravam as inflexões de contralto da Arabela, que agora no palco
aprendia com Booth, numa situação que os críticos tinham por prodigiosamente
inteligente, a pronunciar correctamente o latim, repetindo a frase: Sic semper
lyrannis. Seria necessário, no entanto, ter o génio de uma trágica ímpar
para se libertar desse parasita que se alimentava do seu sangue; daquela
hóspede de seu próprio corpo, incrustada em sua carne como um mal sem remédio. A
vontade de romper com o contrato não lhe faltava. Porém, essas revoltas pagavam-se,
no ofício, com um longo desemprego, e Ruth, que começara a dizer o texto com a idade
de trinta anos, via-se chegada aos trinta e cinco, repetindo os mesmos gestos, as
mesmas palavras, todas as noites da semana, todas as tardes de domingo, sábados
e dias feriados, sem contar com os espectáculos das digressões estivais. O sucesso
da obra aniquilava lentamente os seus intérpretes, que iam envelhecendo à custa
do público de dentro de suas roupas imutáveis, e quando um deles morrera de
enfarte, certa noite, pouco depois de cair o pano, a companhia, reunida no cemitério
na manhã seguinte, exibira, talvez, sem se dar conta, uma aparatosa roupa de luto
que mais fazia lembrar um daguerreótipo. Cada vez mais desgostosa, menos
esperançada em atingir uma carreira que, apesar de tudo, amava por profundo
instinto, a minha mulher deixava-se arrastar pelo automatismo do trabalho imposto,
como eu me deixava arrastar pelo automatismo da minha profissão». In Alejo
Carpentier, Os Passos Perdidos, 2008, tradução de António Santos, Saída de
Emergência, 2010,m ISBN 978-989-637-244-6.
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