quinta-feira, 9 de julho de 2015

Na Esfera do Mundo. António Borges Coelho. «Outro laço, fortíssimo, provinha da partilha de uma língua que se estruturava na fala e na escrita e gerava um tesouro, hoje quase escondido, de textos geográficos, antropológicos, literários, históricos…»

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«Urna força social poderosíssima arrastava para fora de Portugal homens aos milhares, poucas mulheres. Eram homens de 50 soldos, esfarrapados e descalços, pescadores, marinheiros, artesãos ligados à construção naval e ao fabrico das armas, mercadores, escudeiros, fidalgos, clérigos. A torrente carreava para dentro riqueza de fora: as drogas, o ouro, as pérolas, os têxteis; aumentava dentro o número dos escravos da África, da Ásia e da América; atraía europeus. As formas, os cheiros, os sabores chegavam nas velas e nos corpos. Aumentava o tráfego à escala do mundo. Recorria-se ao crédito, iniciava-se a corrida aos padrões de juro. Os campos perdiam mão-de-obra jovem, crescia o número das viúvas. Do extremo ocidental da Europa, um pequeno povo hispano provocava mudanças qualitativas e quantitativas muito profundas à escala do Mundo: na viagem, no pensar, na representação dos humanos, do planeta, da fauna e da flora, rio espanto e na variedade das culturas, na extensão e na velocidade do comércio, nas indústrias do mar e da guerra, nos patamares da riqueza. Não creio que na cristandade haverá rei tão rico como Vossa Alteza. O rei e os seus ministros empurravam uma e outra vez os capitães e os soldados para o Mar Vermelho e a Etiópia. Falem com o Preste João, abram caminho para Jerusalém. Mas o íman eram o ouro de Sofala, os portos do Golfo Pérsico, de Cambaia, de Canará, do Malabar, do Golfo de Bengala, da Birmânia, da Tailândia, do Camboja, da Indonésia, da China e do Japão. A atracção era tão forte que Governador que passe o cabo da Boa Esperança nunca lhe mais lembra se Portugal nasceu no Mundo.
Pilotos, mestres, mareantes, mercadores, clérigos, capitães, geógrafos e políticos carregavam todos os dias sobre as costas a esfera do mapa-mundo, nas palavras de João Barros. E a mestria na construção de navios oceânicos e na arte de navegar, a prática na fundição e manuseio de bombardas de variado poder de fogo, a técnica e saber na construção de fortalezas, deram às armadas portuguesas um temível poder no Atlântico e nos mares orientais. Com Portugal, a forte Europa belicosa, corno personagem militar, política e civilizacional, confrontava a Ásia e a África. A América começava a desvelar o rosto. A Austrália foi encontrada mas continuou na penumbra. No processo de desenvolvimento e apropriação pelos hispanos e europeus do novo continente americano, os portugueses estenderam ao Brasil a civilização do engenho, criada nas ilhas do Atlântico. Cabia aos escravos, índios e negros, a carga do trabalho e do sacrifício. Como diria mais tarde o padre António Vieira: quem nos há-de ir buscar um pote de água ou um feixe de lenha? Quem nos há-de fazer duas covas de mandioca? Hão-de ir nossas mulheres? Hão-de ir nossos filhos?... Ah fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas capas se torceram haviam de lançar sangue. Os portugueses tinham fé, lei e rei. A fé amarrava-os a uma crença e a um ritual da vida e da morte e legitimava a perseguição civil e armada aos mouros e aos luteros; a lei e o rei integravam-nos na comunidade que se individualizara no território ocidental da Hispânia desde o século XII. Outro laço, fortíssimo, provinha da partilha de uma língua que se estruturava na fala e na escrita e gerava um tesouro, hoje quase escondido, de textos geográficos, antropológicos, literários, históricos, linguísticos e científicos.
A militarização da sociedade e o triunfo da Contra-Reforma permitiram que os teólogos, os doutores e os fidalgos se mantivessem na direcção da política, da cultura, da economia e da ideologia. Afundaram as contas, travaram a atividade dos mercadores profissionais, em boa parte, cristãos-novos. O tribunal do Santo Ofício (maldito) e os teólogos conservadores das Ordens Religiosas bloquearam a criatividade do pensamento, a crítica e as práticas que se desviassem dos dogmas tridentinos. Sufocaram no berço a rotura epistemológica que internamente se operava e se desenvolveria na Europa». In António Borges Coelho, Na Esfera do Mundo, Editorial Caminho, 2013, ISBN 978-972-212-642-7.

Cortesia Caminho/JDACT