«(…) Ora esse código é, em termos de uso cultural, de prática adorante
e de intenção, feminino. Não direi
aquilo que pareço querer estar dizendo. O corpo e a tensão erótica que na
ficção de Eça são perceptíveis têm a Mulher como princípio, meio e fim. Em vez
de cenas da vida real ou da vida romântica,
a obra de Eça podia ter como subtítulo Mulheres
ou, para não plagiar anacronicamente Philippe Sollers, Muther. O universo inteiro (para Eça) está escrito em catacteres
femininos. Não é só Teodoro, Teodoro, que foi educado entre saias como o herói de 8
½ de Fellini. Foram todos os seus heróis que banharam numa atmosfera
intensamente feminina. A convivência
meiga das mulheres que envolve Amaro quando acede ao antro maternal da
pensão da Senhora Joaneira é um dado
ou um implícito do mundo afectivo-erótico queirosiano. Os gritinhos de voluptuoso contentamento com que ilumina as infâncias de Teodoro são os mesmos com
que gratifica o mundo feminino em geral e o pseudobeato e provincial do Crime do Padre Amaro. Tudo forma
sistema em Eça e será talvez, quando por demais o notamos, o único senão
visível do príncipe dos nossos delírios turvos e luminosos, pelo poder sem par que
os revelou.
Mas esse banho feminino em que Eça mergulha a vida e a sensibilidade
dos seus heróis, ao menos daqueles cujo destino vai ser determinado pelo
encontro do efémero divino da Mulher,
é também uma cultura precisa, a cultura beata portuguesa, a de todas as
Gangozas, de todas as Titis, que não conhece outra saída para a expressão dos
afectos senão a linguagem inocentemente erotizada dum cristianismo que é, ao
mesmo tempo, de sacristia e de alcova. O rústico padre Amaro é feminizado pelo
amor e pelo olhar de Amélia como Amélia é sensibilizada ao divino pelo desejo
de Amaro. Nem todas as infâncias desses heróis serão como as de Teodoro, mas
obedecem à mesma cultura e relevam do mesmo molde: o de uma exacerbação, de uma
acuidade senão em relação aos movimentos do coração ao menos aos das sensações,
agudamente lidas, que tanto conforto maternante, inocentemente sensual, fez
nascer: Quando recolhíamos ao quarto,
alumiados, passou por nós bruscamente, no corredor, uma senhora, grande e
branca, com um rumor forte de sedas claras e espalhando um aroma de almíscar.
Era a inglesa do senhor barão. No meu leito de ferro, desperto pelo barulho das
seges, eu pensava nela, rezando ave-marias. Nunca roçara corpo tão belo, dum
perfume tão penetrante; ela era cheia de graça, o Senhor estava com ela, e
passava, bendita entre as mulheres, com um rumor de sedas claras.
Teodoro, o herói picaresco da Relíquia
tinha sete anos... Freud tirou-nos todas
as ilusões acerca da inocência infantil. Mas o que é pouco conforme com ela é
que aquelas sensações do precoce Teodoro pudessem inventar para os seus êxtases
esta assimilação entre a senhora das sedas claras e a Mãe de Cristo. Todavia o
que aqui importa é que Teodoro (mero duplo de Eça) passe no plano simbólico
como todos os outros adultos seduzidos pelas Vénus sumptuosas da vida, aquela
linha que durante séculos separara o divino do profano, transmutando o primeiro
no segundo. António Coimbra Martins, no ensaio que marca data nos estudos
queirosianos, debruçou-se com queirosiano espírito sobre o par Eva-Ave que estrutura a dialéctica
erótica queirosiana. Não há grande coisa a acrescentar a essa intuição. Só direi
que, conservando a verdade dela, a leio introduzindo-lhe uma leve torção
interna, uma derrapagem, deslocando-a do seu equilíbrio simbólico e, de algum
modo, invertendo o sentido ou, pelo menos, a conclusão do jogo e do drama que
aí se joga. Como o meu tema se centra em Eros e Eça, tudo parecerá desequilibrado
pela intensidade da sua presença na ficção do romancista, podendo parecer a
intrusão do outro tema, o de Maria, um mero expediente de dramaturgo para
conferir mais interesse a um cenário, onde só Eros realmente domina. Na
verdade, se há desequilíbrio na grande tapeçaria que Eça consagrou às mil
miragens com que Eros ocupa a nossa imaginação e condiciona o nosso destino é a
favor do que parece menos ofuscante, embora o seja muito. Do lado da Mater, menos gloriosa que dolorosa, do
lado do Filho, crucificado na cruz do
Desejo que é a marca sensível da nossa condição, mas não a plenitude dela.
O mais erótico dos nossos autores é o único que entreviu entre os
esplendores, os sortilégios, os êxtases, as felicidades sensíveis de que o
Desejo se reveste, a dor; a angústia,
a tristeza, a miséria, em suma, o oceano não menos inesgotável que o da
sensualidade e sua ofuscação, o das lágrimas
d’Eros. E é nas intencionalmente mais sacrílegas ou profanadoras expressões
da sua ficção, nas mais cínicas ou chocarreiras, que a encontramos, como na Relíquia, embora essa presença esteja em
toda a parte, o traço indelével dessa face trágica de Eros». In
Eduardo Lourenço, As Saias de Elvira e Outros Ensaios, Gradiva, Lisboa, 2006,
ISBN 989-616-151-8.
Cortesia de Gradiva/JDACT