domingo, 12 de julho de 2015

A Lenda de Martim Regos. Pedro Canais. «… e me inquiriu quem eu era, que foi para saber de meus modos, ao que eu então lhe tornei como agora digo: sou Martim Regos do lugar de Santo António, que é termo desta vila de Torres Novas. E seguidamente quis ele saber ao que eu vinha…»

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De como eu fui chamado o santinho da putaria
«Na minha primeira idade não queria eu nada pois tinha grande consolo no leite de burra que me dava minha mãe. Mas porque as histórias de todos os homens se fundam em seus nascimentos, não hei-de aqui dar começo a meu relato sem antes dar conta de haver nascido pelos dias em que o turco Mafamede tomou por cerco a nobre cidade de Constantinopla, conforme me foi dito por minha mãe, para que me não varresse de ideia a era da nossa salvação de mil e quatrocentos e cinquenta e três. Mas eram já passados seis ou sete anos desde o meu nascimento quando sobreveio o primeiro de todos os meus quereres, o qual foi querer ser santo e muito abençoado pela santa Madre Igreja e venerado por toda a cristandade. E assim haveria de ter sido verdadeiramente, não fora a língua comprida e peçonhenta das mulheres mundanais da putaria velha que havia na vila onde nasci, que andando mui invejosas de uma sua igual, me causaram grande e subida desgraça.
Direi que teve este querer seu começo no dia em que me levou minha mãe a casa do meu primeiro senhor para que lá fosse criado. E desta hora tenho eu lembrança muito certa, pois todo o caminho fui tremendo, e com grande variedade de suspeitas, e assaz arreceio, e fazendo toda a sorte de inquirições a minha mãe, cuidando que me haviam de tratar com muitos maus modos, e que me haviam de fazer certas coisas muito pouco cristãs como são as merdígeras, e olhados mais, e piores, que também as há neste mundo. Mas destes meus arreceios não dei conta a minha mãe, e a todas as minhas inquirições foi ela dando resposta sem enfado algum, e sempre com grande satisfação da sua alma, pois que em saindo eu de sua casa, ficavam então somente oito ou nove filhos para dar sustento, que eu já não tenho lembrança certa de meus irmãos.
E em lá chegando então a casa de meu senhor, que era chamado Garcia, me viu ele meus dentes, e minhas mãos, e me inquiriu quem eu era, que foi para saber de meus modos, ao que eu então lhe tornei como agora digo: sou Martim Regos do lugar de Santo António, que é termo desta vila de Torres Novas. E seguidamente quis ele saber ao que eu vinha, e eu tornei-lhe assim: venho servir a vossa mercê em vossa casa e na saboaria, e no mister do sabão branco e do sabão preto. Tive então grande contentamento, pois logo ali meu senhor deu mostra da muita estima que fazia tenção dar por mim nos anos que haviam de vir, que ficando ele sobremaneira agradado de meus modos, tirou prontamente de sua algibeira dinheiro para comprar galinha muito bem assada, que me deu em minha mão, mas recomendando-me muito que não a comesse senão ao outro dia, que era para que não quebrasse o jejum de sexta-feira que então ia correndo.
Porém, muito custoso me foi não comer a dita perna de galinha senão ao outro dia, por quanto muito grande era a míngua ao que eu andava por esse tempo e bem assim porque tão saborosa vianda era coisa que nunca havia visto assim tão fartamente posta em minha mão. Mas porque tudo eu queria fazer em grande preceito e conforme me era ordenado, prontamente guardei a dita perna de galinha em minha algibeira do saião, para ter a certeza que no outro dia havia de comê-la.
Porém, vinda a noite, e sendo corrida já parte dela, veio meu senhor acordar-me e sacudir-me a palha de cima, e inquirir-me onde estava a perna de galinha, que a queria ver prontamente com seus olhos. E grande foi então o medo e maiores ainda foram os arreceios que atravessaram meu coração, vendo ali mesmo adiante de mim no meio da noite, a cara grande e feia de meu senhor, que monstro assim nunca houvera igual no pior conhecido senhor, pois grande foi o susto que me pregou que logo ali soltei minhas águas pelas pernas a baixo, sem haver tempo de sair da palha. Pior foi que para bem guardar a perna de galinha, havia-a eu metido no aconchego de minhas partes, lavada em mijo e aparrada de todos os seus bons odores. Mas queria então meu senhor que eu lhe mostrasse a perna de galinha onde estava, que era para saber se eu havia .cumprido com quanto me fora ordenado, ao que eu logo lha mostrei, tirando-a do meio de minhas pernas. E vendo ele ali a perna de galinha toda inteira diante de seus olhos, ficou então mui agradado, e risonho, e muito cheio de boas palavras, dizendo-me que a podia comer prontamente, e que mais não era mister esperar, pois tinha já por certo que eu era muito bem mandado. E ouvindo estas palavras, logo me pus a comê-la sem mais delongas, que foi sem olhar à questão que deixei dita dos paladares». In Pedro Canais, A Lenda de Martim Regos, Oficina do Livro, 2004, ISBN 978-989-555-079-1.

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