De como eu fui chamado o santinho da putaria
«Na minha primeira idade não
queria eu nada pois tinha grande consolo no leite de burra que me dava minha
mãe. Mas porque as histórias de todos os homens se fundam em seus nascimentos,
não hei-de aqui dar começo a meu relato sem antes dar conta de haver nascido
pelos dias em que o turco Mafamede tomou por cerco a nobre cidade de Constantinopla,
conforme me foi dito por minha mãe, para que me não varresse de ideia a era da
nossa salvação de mil e quatrocentos e cinquenta e três. Mas eram já passados
seis ou sete anos desde o meu nascimento quando sobreveio o primeiro de todos
os meus quereres, o qual foi querer ser santo e muito abençoado pela santa
Madre Igreja e venerado por toda a cristandade. E assim haveria de ter sido
verdadeiramente, não fora a língua comprida e peçonhenta das mulheres mundanais
da putaria velha que havia na vila onde nasci, que andando mui invejosas de uma
sua igual, me causaram grande e subida desgraça.
Direi que teve este querer seu
começo no dia em que me levou minha mãe a casa do meu primeiro senhor para que
lá fosse criado. E desta hora tenho eu lembrança muito certa, pois todo o
caminho fui tremendo, e com grande variedade de suspeitas, e assaz arreceio, e
fazendo toda a sorte de inquirições a minha mãe, cuidando que me haviam de tratar
com muitos maus modos, e que me haviam de fazer certas coisas muito pouco
cristãs como são as merdígeras, e olhados mais, e piores, que também as há
neste mundo. Mas destes meus arreceios não dei conta a minha mãe, e a todas as
minhas inquirições foi ela dando resposta sem enfado algum, e sempre com grande
satisfação da sua alma, pois que em saindo eu de sua casa, ficavam então
somente oito ou nove filhos para dar sustento, que eu já não tenho lembrança
certa de meus irmãos.
E em lá chegando então a casa de
meu senhor, que era chamado Garcia, me viu ele meus dentes, e minhas mãos, e me
inquiriu quem eu era, que foi para saber de meus modos, ao que eu então lhe
tornei como agora digo: sou Martim Regos
do lugar de Santo António, que é termo desta vila de Torres Novas. E seguidamente
quis ele saber ao que eu vinha, e eu tornei-lhe assim: venho servir a vossa mercê em vossa casa e na saboaria, e no mister do
sabão branco e do sabão preto. Tive então grande contentamento, pois logo
ali meu senhor deu mostra da muita estima que fazia tenção dar por mim nos anos
que haviam de vir, que ficando ele sobremaneira agradado de meus modos, tirou
prontamente de sua algibeira dinheiro para comprar galinha muito bem assada,
que me deu em minha mão, mas recomendando-me muito que não a comesse senão ao
outro dia, que era para que não quebrasse o jejum de sexta-feira que então ia
correndo.
Porém, muito custoso me foi não
comer a dita perna de galinha senão ao outro dia, por quanto muito grande era a
míngua ao que eu andava por esse tempo e bem assim porque tão saborosa vianda era
coisa que nunca havia visto assim tão fartamente posta em minha mão. Mas porque
tudo eu queria fazer em grande preceito e conforme me era ordenado, prontamente
guardei a dita perna de galinha em minha algibeira do saião, para ter a certeza
que no outro dia havia de comê-la.
Porém, vinda a noite, e sendo
corrida já parte dela, veio meu senhor acordar-me e sacudir-me a palha de cima,
e inquirir-me onde estava a perna de galinha, que a queria ver prontamente com
seus olhos. E grande foi então o medo e maiores ainda foram os arreceios que
atravessaram meu coração, vendo ali mesmo adiante de mim no meio da noite, a
cara grande e feia de meu senhor, que monstro assim nunca houvera igual no pior
conhecido senhor, pois grande foi o susto que me pregou que logo ali soltei
minhas águas pelas pernas a baixo, sem haver tempo de sair da palha. Pior foi
que para bem guardar a perna de galinha, havia-a eu metido no aconchego de
minhas partes, lavada em mijo e aparrada de todos os seus bons odores. Mas queria então meu senhor que
eu lhe mostrasse a perna de galinha onde estava, que era para saber se eu havia
.cumprido com quanto me fora ordenado, ao que eu logo lha mostrei, tirando-a do
meio de minhas pernas. E vendo ele ali a perna de galinha toda inteira diante
de seus olhos, ficou então mui agradado, e risonho, e muito cheio de boas palavras,
dizendo-me que a podia comer prontamente, e que mais não era mister esperar,
pois tinha já por certo que eu era muito bem mandado. E ouvindo estas palavras,
logo me pus a comê-la sem mais delongas, que foi sem olhar à questão que deixei
dita dos paladares». In Pedro Canais, A Lenda de Martim Regos, Oficina
do Livro, 2004, ISBN 978-989-555-079-1.
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