terça-feira, 14 de julho de 2015

Episódios da Monarquia Portuguesa. João Paulo Oliveira Costa. «… a comunidade passasse a viver ai a partir de 24 de Fevereiro de 1132, sob a chefia de Teotónio. Os cónegos de Santa Cruz tinham particular atenção à celebração litúrgica…»

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A fundação da comunidade dos cónegos regrantes de Santa Cruz. 28 de Junho de 1131
«A cristandade sempre fervilhou de movimentos reformistas. O carácter hierárquico da Igreja e a definição dogmática dos principais fundamentos da fé não impediram que muitos baptizados, quer clérigos, quer leigos, propusessem reinterpretações, veiculassem novas ideias e experimentassem novas práticas, muitas das vezes em conflito com a hierarquia. Em todas as épocas, a passagem do tempo ia tornando certas tradições desajustadas e estimulava a emergência de novas dinâmicas, em particular entre as instituições de vida comunitária. A Igreja viveu, e vive, permanentemente nesta tensão entre tradicionalistas e reformistas, e foi a sua capacidade para se modificar a passos lentos que lhe permitiu sobreviver à passagem dos séculos e a tornou na instituição mais antiga do mundo. No início do século XII, as comunidades de cónegos que seguiam a regra de Santo Agostinho eram populares e constituíam um movimento de renovação da vida espiritual do clero. Telo, arcediago de Coimbra, tentou criar uma dessas comunidades na sua cidade, a partir de 1128. Contou com o apoio de duas personalidades de vulto: João Peculiar, então mestre-escola da catedral conimbricense, e Teotónio, ao tempo prior da Sé.
Estes clérigos conseguiram arrair o jovem Afonso Henriques para a sua causa; o infante apoiou-os e concedeu-lhes terrenos junto às muralhas de Coimbra. A 28 de Junho de 1131 foi lançada a primeira pedra para a edificação da nova igreja e do novo espaço comunitário; as obras decorreram num bom ritmo, o que permitiu que a comunidade passasse a viver ai a partir de 24 de Fevereiro de 1132, sob a chefia de Teotónio. Os cónegos de Santa Cruz tinham particular atenção à celebração litúrgica e à sua visualização (perfeita) pelos crentes. Beneficiando da proteção do infante, prestes a tornar-se rei, o mosteiro desenvolveu-se e transformou-se rapidamente no primeiro guardião da memória colectiva portuguesa. Os seus chefes eram eclesiásticos perspicazes e determinados, e a congregação ganhou a proteção papal por bula de 26 de Maio de 1135.
A 10 de Junho de 1136, João Peculiar foi eleito bispo do Porto, e dois anos depois sucedeu a Paio Mendes na sé de Braga; este prelado foi um dos principais esteios internacionais da causa portucalense e um aliado leal de Afonso Henriques. Telo morreu a 9 de Setembro de 1136, mas Teotónio, por sua vez, permaneceu à frente de Santa Cruz, recusando convites para subir à dignidade episcopal. Morreu em 1162 e foi canonizado logo no ano seguinte. Um bispo político e um santo súbito foram assim duas pedras angulares desta instituição, cuja existência se confunde com a própria causa independentista dos portucalenses, e cujos registos escritos deixados pelos seus membros constituem fonte preciosa para o conhecimento do século XII português.
A relação íntima de Santa Cruz com o rei fundador foi rematada com a escolha da sua igreja para ser a última morada do monarca e, passados oito séculos, Santa Cruz e Afonso Henriques continuam juntos». In João Paulo Oliveira Costa, Episódios da Monarquia Portuguesa, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2013, ISBN 978-989-644-248-4.

Cortesia de CL/TDebates/JDACT