segunda-feira, 13 de julho de 2015

O Fio do Tempo. João Paulo O. Costa. «… 4 de Outubro de 1500. Um homem contempla Lisboa à janela dos seus aposentos no paço da Alcáçova. Tem 101 anos, e é o último conquistador de Ceuta vivo…»

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A ampulheta
«Imóvel sobre a nessa, a ampulheta assinalava o movimento incessante do mundo. Colocada junto a uma janela aberta de par em par, quem a observava via ao longe os telhados vermelhos do casario de Lisboa descendo pela colina do castelo, espalhando-se pelo vale entre o Rossio e o Tejo, e depois subindo pela encosta que levava ao Carmo e à Trindade. Lá do alto, a azáfama da cidade era imperceptível. O dia estava calmo e ameno, próprio de um suave começo de Outono; o Sol já começara o seu movimento descendente, e aproximava-se lentamente das torres das Portas de Santa Catarina, uma das entradas da muralha que ainda envolvia quase toda a cidade, tal como el-rei Fernando I o determinara, havia mais de um século. Sentado ao lado da mesa, Álvaro olhava fixamente os minúsculos grãos de areia que se precipitavam para a âmbula inferior. O passar do tempo sempre o fascinara e ele próprio era um testemunho vivo da marcha impiedosa dos anos. O seu rosto era percorrido por inúmeras rugas profundas, a pele encarquilhara, e, na cabeça, os raros cabelos estavam brancos, tal como a longa barba; na boca restavam poucos dentes e alguns dos sobreviventes eram indignos do seu fidalgo possuidor; o corpo curvara um pouco, e, ao lado da cadeira, um bordão revelava que António Ataíde se movimentava com alguma dificuldade. Sobre a mesa estava a sua espada. É certo que já não a empunhava há dez anos, desde que enfrentara os mouros às portas de Arzila, mas o fidalgo insistia em a ter junto de si. Vossa senhoria não tem precisão. Já ganhou a sua aposentadoria, repetia pacientemente o criado que o ajudava a sair do leito pela manhã. Nunca se sabe. El-rei pode precisar de mim.
Apesar do corpo envelhecido, a mente permanecia lúcida, a visão precisa e a mão, de pena em punho, continuava a voltear habilidosamente sobre o papel quando escrevia poemas. Amava a vida, apesar de todos os sofrimentos que experimentara, mas estava certo de que o fim se aproximava. Naquele momento, porém, o espírito de Álvaro não se preocupava com a iminência da morte; acompanhava, concentradíssimo, o fio de areia em movimento. Os últimos grãos aproximavam-se do orifício, e a sua atenção redobrou, ao mesmo tempo que espreitava pelo canto da janela o campanário do Convento do Carmo. Ainda o fio de areia continuava a caminhada descendente quando os sinos do convento começaram a dobrar e o seu som ecoou pela cidade. Exasperado, Álvaro deu uma palmada na mesa. Pintado, um dos cães que circulavam pelo paço, e que apreciava particularmente aquela câmara, ergueu a cabeça. Álvaro estava irritado, pois acabara de confirmar que o sineiro dos carmelitas não tocava o sino à hora certa.
Frei Pedro mostrara-lhe, orgulhoso, um relógio que havia sido dado ao convento por um penitente devoto do Santo Condestável, e explicara-lhe que passara a guiar-se pelo novo instrumento para tocar o sino. Álvaro tentou demovê-lo, explicando-lhe que aquelas maquinetas tinham muitas imperfeições e que nunca poderiam substituir o rigor do tempo marcado pelas ampulhetas. O frade impertinente encolhera os ombros e não ligara nem à sua fidalguia nem à sua longa experiência. Agora, porém, ele tinha a prova de que o relógio não cumpria rigorosamente a sua função e de imediato decidiu escrever ao superior do convento. Desde criança que assistia à imposição do relógio como medidor do tempo, porém não estava convencido. O tempo fluía incessantemente, em silêncio, enquanto a máquina registava o avanço dos minutos aos solavancos; ora, o Sol não dava saltinhos enquanto percorria diariamente o seu trajecto pelo céu. E aquelas máquinas estragavam-se e começavam a desacertar. Continuava a preferir as velhas ampulhetas. É verdade que tinham que de ser viradas regularmente, mas andara pelo mar e convivera com comunidades monásticas, e tanto a marinhagem como os monges sabiam sempre a hora. O tempo exacto interessava sobretudo a quem tinha afazeres nocturnos, pois de dia, todos se orientavam pelo Sol. E as gentes da cidade podiam acertar o horário com a ajuda dos sinos, que não precisavam daquela coisa; como acabava de provar, a sua ampulheta era mais certeira que o relógio de frei Pedro». In João Paulo O. Costa, O Fio do Tempo, 2009, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-989-644-135-7.

Cortesia CL/TDebates/JDACT