Dionísio converte o seu conterrâneo…
«Porque queres ir a Kâshi?
Livrar-me do peso da morte.
A quem pedes?
A deusa Kâli, a mãe dos três mundos.
Aqui mais perto está aquele que te salvará.
Negro de aspecto, negro de nome
ó o vinho.
Bebe, Khayyam.
Que importa que o futuro seja a morte?
Não a conhecerás se o vinho
for o teu leite e a tua unção.
Bebe. Nenhum peso te sufocará.
Bebe e serás leve, Khayyam».
Dinamene e Camões discutem o Tao
«Dinamene
Confúcio disse: ama.
Camões
Que outra coisa eu fiz?
Mas meu desejo foi sempre desacertado
com as coisas do mundo!
Dinamene
Eis-te, assim, infeliz.
Tu, expansivo oceano,
desperdiçaste a água vital
em solos estéreis.
Camões
Amada Dinamene, de que morre um homem bom
senão da sua bondade?
Dinamene
Tua vida é um momento na infinitude do tempo.
Busca tudo em ti.
Camões
Eu tive pouco, nada recebi.
Jamais fui o iluminado
porque nunca a mim mesmo me conheci.
Conheci os outros
e nem por isso fui sábio.
Como não alcancei a paz,
se de todas as coisas me esvaziei?
Dinamene
Seguir errado e não mudar de caminho
é, assim o diz o Tao, seguir errado.
O destino é incurável».
Lamentação de Lisistrata
«Sob o signo do Escorpião
a arma se levanta
directa ao meu corpo arco-íris.
A potente mão pousa e acaricia
o amor
no lugar que foi privação.
Por quantas praias as corças correram felizes
até ao afogamento nas águas róseas,
nos doces jardins sangrentos de flores abertas.
Desceu sobre nós a palavra paz,
cresceram lilases na pele dos amantes!
E partimos as flechas,
consumada a reunião.
Mas entre os muros brancos da casa,
engendram-se as mentiras.
Não se repete o nosso clamor uníssono
contra o poder.
São desertos as belas palavras
de todos os idiomas,
espuma de mares jovens
moribunda no desejo das fortes pernas.
Nos campos de aveia,
lúbricas,
suportamos a solidão,
regressamos à submissa paciência,
mortais musgos de açucenas
dispostas ao sacrifício e à escravidão.
E vos recebemos com canções heróicas.
Miserável é o tempo do futuro
pois que, sedentas, débeis, selvagens,
vos esperamos perfumadas a sândalo e frutos.
Eu sou um corpo que não tenho,
pura emanação e olfacto,
lesão disponível.
Dormiremos por séculos
no vosso sangue derramado
bebido em sémen e lágrimas.
Para sempre».
Poemas de Orlando Neves, in
‘As Máscaras’
In Orlando Neves, Máscaras, edições Sol XXI, Tipografia Voz de Lamego,
1997, ISBN 972-8183-52-6.
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