Ana de Castro e o Salvamento da Clepsydra
«(…) E traz um pós-escrito de uma beleza tão impressionante como o pedido
da sua amiga ao sugerir-lhe que fosse
despedir-se dela, antes de partir para o Oriente: P.S., Seria uma iniquidade pedir-lhe que me
escrevesse; mas, quando houver jornais, continuo a pedir-lhe que não se esqueça
de me mandar um ou outro, de vez em quando, e que eu reconheça no endereço a
sua letra. É também para mim uma doce evocação familiar.
Assim acabou a correspondência
de Camilo para Ana. Infelizmente, a desta para ele, como as demais, perdeu-se
na indescritível desordem da casa de Pessanha em Macau. Quando da última vinda
de Camilo Pessanha a Portugal, em 1915,
em gozo de licença, como se deu o
encontro dos dois? De quem
partiu a iniciativa? Ana de Castro Osório gozava de grande prestígio. A
sua obra e actividade editorial eram publicamente reconhecidas, tendo sido os
seus livros de leitura aprovados oficialmente e adoptados nas escolas do nosso
país e do Brasil. Edições da Lusitânia, com sede na sua casa, em Lisboa, a
editora da Clepsydra. Como então se dizia, recebia, às quintas-feiras os escritores, os jovens autores,
os jornalistas. Sem nunca dele se servir, estava próxima do poder, era amiga
pessoal de Afonso Costa e de outros dirigentes republicanos e, como disse-mos,
em breve desempenharia um papel relevante, criando, após a Primeira Guerra Mundial,
a Cruzada das Mulheres Portuguesas, com a finalidade de prestar apoio aos
nossos soldados e às suas famílias sem recursos e, depois, aos feridos,
mutilados e estropiados. No apogeu intelectual, tinha então quarenta e três anos.
Sabemos hoje que a iniciativa
do reencontro partiu dela (nem outra coisa seria de esperar). Uma história encantadora
pela discrição, pelo tacto e pelo afecto. Ana tinha um sobrinho de que gostava muito,
António (António Pereira Osório de Castro (1901-1972), natural de Setúbal; ilustre
advogado, foi director do Contencioso do Banco de Portugal e, depois,
administrador; ele e sua mulher, a poetisa Maria Valupi, eram meus tios e padrinhos),
e foi ele, que era, como a escritora dizia, o seu pajem, então com catorze anos, o incumbido de trazer Camilo de volta.
Esse curioso episódio foi contado pelo próprio, cinquenta anos depois de ter conhecido
Pessanha. Nessa altura, o jovem vivia com os avós e com a tia Ana Castro Osório,
que me queria como a qualquer dos seus filhos
e a quem eu amava como se fosse minha Mãe.
Numa manhã desse Outono de 1915,
minha tia [...] disse-me que queria dar-me uma missão delicada: a de procurar, nessa
manhã, no Hotel Francfort, do Rossio, e tentar trazer para almoçar em nossa casa
o dr. Camilo Pessanha, chegado de Macau, grande artista e grande amigo da nossa
família, velho e querido companheiro de Coimbra de meu tio Alberto Osório
Castro. De posse da minha credencial, corri ao Francfort e, poucos minutos depois,
estava junto à cama onde ainda se encontrava Camilo Pessanha [...]. Correspondeu,
enternecido, aos meus cumprimentos, releu, na carta, o meu nome e aquele com que,
familiarmente, me tratavam, [...] mostrou-me o mais bondoso sorriso quando lhe
afirmei que poderia esperar, que o levaria comigo e pediu-me, então, que o aguardasse
um pouco na sala do hotel, enquanto se aprontava. [...] Devo acrescentar que ao
ver assim, criança que eu era, pela primeira vez o dr. Camilo Pessanha, [...]
julguei ter visto alguém que me parecia um santo.
Não era um santo, mas um sofredor, um desesperado terrível. Levado pelo
adolescente, assim regressou a casa de Ana, e aí, nesse mesmo dia, almoçou,
como a sua amiga desejava e conseguiu! António Osório Castro recorda os intermináveis jantares e os serões, no Arco
do Limoeiro, com Camilo Pessanha recitando os seus versos ou falando da arte chinesa!
Intermináveis os jantares, não por abundância de pratos, mas porque não havia possível
seguimento neles: Camilo falava, falava, esquecido de comer, nós ouvíamos...
Terão sido estes quatro meses da última estada em Lisboa os mais felizes
daquela atormentada vida? Ouçamos por ora o jovem pajem, de sua tia, que se transforma no de Pessanha, e que este familiarmente
tratava por Antoneco. Passou a haver entre
ambos um quotidiano convívio». In
António Osório, O Amor de Camilo Pessanha, edições ELO, obra apoiada pela
Fundação Oriente, colecção de Poesia e Ensaio, Linha de Água, 2005, ISBN
972-8753-43-8.
Cortesia da F. Oriente/Linha de Água/JDACT