A Cidade Manuelina e Filipina
«(…) As fontes públicas
foram também preocupação régia que Mardel satisfez numa série de desenhos, os mais
simples executados (Esperança, Rato, rua Formosa), os outros abandonados, e
entre estes duas fontes monumentais coroadas por estátuas de João V, uma
equestre, numa edificação de grande volume, outra pedestre, ignorando-se para
que locais da cidade, então servida por um magno aqueduto que foi a grande obra
de engenharia do reinado joanino. Depois de tentativas e empreendimentos já em 1573, e nos reinados filipinos (1618
e 1621), a iniciativa partiu então do procurador da cidade, Gorgel Amaral
(1728),
com a intenção de levar água corrente a uma parte da cidade, o Bairro Alto e
daí para baixo até ao paço real, remediando uma habitual carência em que já
várias vezes tinham pensado os edis. Uma legislação apropriada deu apoio fiscal
à empresa, e o decreto de 12 de Maio de 1731 mandou começar as obras iniciadas no ano seguinte e terminadas
dezassete anos depois, com prolongamento nas fontes citadinas, numa mãe
d’água e num notável arco, às Amoreiras, de Mardel, em 1752. Os engenheiros Manuel Maia e Custódio
Vieira conduziram os trabalhos, e depois (1747) o próprio Mardel, sempre com o
interesse régio. Desde Caneças, das Águas Livres que lhe deram o nome, o
aqueduto conta dezoito quilómetros até às Amoreiras, emergindo da terra no alto
da Serafina para galgar o vale de Alcântara até Campolide, em perto de um
quilómetro de extensão sobre 35 arcos, 21 de volta perfeita, 14 quebrados ou
ogivais, numa forma que não deixou de ser criticada na altura, pela sua lembrança
medieval depreciada. O mais alto destes arcos, fechado em Outubro de 1744, mede 65,25 metros de altura,
e o todo apresenta uma monumentalidade que impressionou os contemporâneos. A mais magnífica e a mais sumptuosa
empresa deste género sem excluir as dos Romanos e dos Franceses,
afirmava em 1755 o Journal Etranger
de Paris, no ano em que a sua boa construção o fez resistir ao terramoto.
No pólo utilitário
oposto ao paço real e à sua patriarcal, o aqueduto é um sinal maior da cidade municipal,
num equipamento urbano de que ela precisava e que os seus habitantes mereciam, numerosos
como eram já nos princípios de Setecentos. 90 000 fogos (ou seja 360 000
habitantes) contavam as relações paroquiais em 1704, enquanto em 1716,
para obtenção de uma segunda diocese na cidade, se garantia ao papa que só a
parte ocidental, em questão, tinha 300 000 habitantes, ou seja, o total de 600
000 para a cidade inteira, como se concluiu, imprudentemente, em 1754, em informação igualmente
fornecida a Roma. Já em 1739 se
tinha afirmado a existência de 800 000, mas mais verosimilhança apresenta um
cômputo de 1729, quando se tratava
de lançar realistamente o imposto do real
da água para a construção do aqueduto; calcularam-se então 50 000 vizinhos
(famílias), ou seja uma população de cerca de 200 000 pessoas. Cálculo em certa
medida documentado indica 250 000 habitantes na altura do terramoto de 1755.
Este quarto de milhão de
pessoas vivia numa cidade que há muito transbordara da cerca medieval: pelos meados
do século citavam-se já os sítios dos Anjos, de Andaluz, de S. José, de Santa
Marta, da Esperança, de S. Paulo, de Santa Catarina. Ela não alterara por isso
a sua estrutura antiga, como vimos, ao longo dos dois últimos séculos: no mesmo
sistema parcelar, os mesmos prédios
se iam restaurando ou reconstruindo, nas mãos dos seus proprietários, novecentos
dos quais eram foreiros do Senado em 1717.
A planta que o engenheiro-mor do reino, Manuel Maia, levantou por ordem régia,
entre 1713 e 1718, com toda a
individuação de praças, palácios, templos, mosteiros, freguesias, ermidas, ruas
e travessas, desaparecida, mas de que chegaram cópias até nós, mostra-nos
Lisboa em pleno reinado joanino, e é essa cidade que importa agora descrever,
nas suas linhas de força. No largo vale da Baixa, limitado a sul pelo Tejo e pelo
Terreiro do Paço, de configuração irregular, a norte pelas hortas de Valverde e
pelo Rossio, irregular também, a nascente pela colina do Castelo e a poente pela
que se estende de S. Francisco ao Carmo, um grande L, descendo do Rossio
enviezadamente e dobrando a noventa graus para poente, comanda a malha urbana
enredada do conjunto». In José Augusto França, Lisboa. Urbanismo e
Arquitectura, Director da Publicação Álvaro
Salema, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Oficinas Gráficas da Livraria
Bertrand, série Artes Visuais, Instituto Camões, 1980.
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