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Para um muçulmano, os seus antagonistas eram cães de cristãos. De parte a
parte; porém, não havia condescendência nem complexo de inferioridade.
Encaravam-se em pé de igualdade com intensa aversão mútua. Os cristãos e os
muçulmanos dos centros civilizados nutriam uns pelos outros sentimentos
pessoais que iam do ódio intenso à admiração por um inimigo valente. Duas
religiões proselíticas, professadas por povos enérgicos e belicosos, deviam
inevitavelmente entrechocar-se. E assim aconteceu, em todos os lugares, na
terra e no mar, sempre que se encontraram, cada um dos contendores com um
profundo sentido da superioridade da sua maneira de sentir. Não podemos dizer
que portugueses e árabes se encontravam em desacordo no Oriente por falta de
compreensão mútua, pelo contrário: compreendiam-se demasiado.
Com
os Hindus o caso era muito diferente, mas nem por isso é exacto dizer que Vasco
da Gama foi um diplomata desastrado. Os Portugueses queriam, honestamente,
entabular relações amigáveis e fizeram o que puderam para serem correctos e não
darem razão de queixa. Os erros que cometeram deveram-se à incompreensão, que
era mútua. Não é nada razoável censurar Vasco da Gama por não compreender o
samorim de Calecute, como também o não é censurar o samorim por não compreender
Vasco da Gama. Acaso as coisas
poderiam passar-se de outra maneira? Não havia quem pudesse dar
explicações de parte a parte. Antes disso, a Europa não tivera contacto directo
com a Índia.
Eis
o que torna tão interessante esta viagem, independentemente do seu mérito de
grande feito de navegação. Vasco da Gama foi o primeiro embaixador ocidental
dos tempos modernos a aparecer diante de um trono hindu. O intercâmbio então
iniciado com ele jamais voltou a interromper-se. Foi ele o pioneiro que pôs
em contacto para sempre a civilização de dois continentes. Portanto, a sua
viagem pode, com verdade, considerar-se como início de uma época, não só do
ponto de vista náutico e geográfico, mas também do político. As suas
repercussões foram tão vastas e as suas consequências tão múltiplas, que é para
duvidar se qualquer outra exerceu tal influência na Terra. Os pormenores desta
aventura extraordinária são uma história que vale bem a pena contar». ». In
Elaine Sanceau, Vasco da Gama, O Caminho da Índia, tradução de António Dória,
Civilização Editora, Porto, 2013, ISBN 978-972-263-622-3.
Cortesia
de Civilização/JDACT