O Comércio do Invisível
«(…) Pela segunda vez, se sentiu Deus desiludido com a sua criação.
Primeiro, aspectos ingovernáveis da omnisciência dos planos subtis, haviam
feito degenerar a sua primitiva obra numa batalha campal entre duas facções
rivais; agora, a própria degradação dos planos subtis de tal modo se infiltrara
na sua nova modelação, que do primeiro estado da Terra nada restava. Nem tudo
estava ainda assim perdido, já que a humanidade podia optar por uma aliança com
os anjos da Luz, repelindo os rebeldes; um tal conluio se revelaria até
decisivo para o recuo definitivo das legiões diabólicas, se não para o seu
aprisionamento e posterior desaparecimento. Não podia porém restituir à humanidade
a sua primitiva imortalidade; tudo o que lhe sobrava era esperar, ansioso mas
distante, o resultado da livre escolha do homem e da mulher. Retirou-se pois o
Criador para o píncaro do seu universo, aí onde a Luz podia brilhar sempre no
meio-dia.
Era o seu reduto e aquele que mais próximo estava do seu estado
inicial, quando a criação não se diferenciara ainda do seu Criador e todos os
problemas correlatos que daí advieram eram desconhecidos. Entregou o comando
das operações contra os revoltosos aos seus arcanjos e a vigilância dos seus domínios
aos querubins e serafins. Ele ficou entregue ao Nada, que fora a sua primitiva
existência. Apenas saía desse estado de nolição, para tomar contacto com a sua
coorte e activar em momentos particulares uma subtil intervenção providencial
na nova natureza material da Terra. Ele não podia restituir a inocência
original à humanidade, e por via dela o seu glorioso estado de imortalidade
inicial, mas podia não obstante, por uma intervenção pontual bem dirigida, agir
sobre ela, aclarando o seu discernimento e acelerando as suas escolhas a favor
da Luz e do Bem. Assim acontecera com Noé e Abraão, assim sucedera com Jacob,
com José e com Moisés. Assim se voltara a cumprir com David, com Salomão, com
Daniel e com os profetas. O derradeiro momento dessa intervenção era a presença
de Jesus Cristo na história da humanidade. Jesus era o Filho unigénito do
Criador, uma emanação da Luz mais alta, um emissário da inteligência divina,
propositadamente enviado à humanidade para se misturar com ela. Por Ele se
havia encetado o processo da definitiva redenção da Natureza material degradada
da Terra e a sua resoluta reintegração na Luz pura do Pai.
Eis a visão que dona Leonor Teles tinha da criação do plano
terreno. Percebiam-se nesta visão aspectos seminais que vinham da formação com
o cónego de Braga unidos a outros que eram apenas o resultado da sua índole de
solitária e imaginativa. Caso os manifestasse, seria com certeza repreendida,
ainda que brandamente, pois nela se via pudor, concórdia com a eucaristia, que
todos os dias tomava, e fé na figura de Cristo. Mas ela, fechada e anacoreta,
guardava o que pensava. Vivia desejosa de solidão; por ela resguardava
segredos e salvava o invisível. E por essa porta chegava o eflúvio divino
dos primeiros tempos, a que ela se habituara, depois da lição do cónego, a
chamar de bdélio. Tinha consciência que o seu saber era o resultado dum dom
invulgar, que pouco se semeava e mais raro se colhia; se o não calasse,
roubar-lho-iam. A mediunidade com que soubera observar primeiro a história da vida
terrena, desde o parto no paço de Zamora até à estação do Paraíso, e depois a
existência dos mundos invisíveis, a partir das auras emanadas pelos seres
materiais até às manifestações dos mundos subtis primordiais, alertara-a para a
raridade da sua situação, levando-a a instituir um contraste com os
contemporâneos. Olhava dona Leonor Meneses, sua prima, modelo de casquilhas e
linguareiras, e não se impedia de comentar. Deus me guarde de tal modo! Não há
mofina pior que viver amiúde em faladuras de alheios». In António Cândido Franco, Vida
Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.
Cortesia de Ésquilo/JDACT