A data de produção do
manuscrito da Vita Theotonii
«(…) Por sua vez, o Prof. Aires Nascimento considera o
manuscrito da Vita Theotonii
uma cópia com intervenções menos hábeis de alguém por volta de 1180, apresentando para o efeito três
argumentos. O primeiro tem a ver com a referida falta de correspondência do dia
da semana, feria VI, com o dia da morte de São Teotónio a 18
de Fevereiro de 1162. Depois de
toda a atenção que nos mereceu o assunto, não encontrei, em si mesmo, nenhum
indício que levasse a admitir que pudesse ter tido origem num copista e não no
autor. Aliás, penso que a admissão pelo A. Nascimento de se tratar de erro de
copista, se apoia essencialmente no segundo argumento que refere: o facto de
o bispo de Coimbra, Miguel Salomão, aparecer no texto como cónego regular já no
momento em que preside às exéquias de Teotónio. Entendendo que essa
situação apenas se verifica depois da sua resignação em 1176, concluiu pela admissão de que esta parte final do texto foi
retocada por alguém menos cuidadoso em evitar anacronismos e com pouco rigor em
reconstituir factos e datas ou também em rever a cópia. Todavia, este argumento
poderá não ser válido, pois é possível que Miguel Salomão tenha sido cónego
regrante de Santa Cruz antes de ser bispo de Coimbra. No Livro das Vidas
dos Bispos da sé de Coimbra, escrito no século XVI pelo cónego Pedro
Álvares Nogueira, refere-se que Miguel Salomão: se meteo no mosteiro de
santa Cruz da ordem de santo Agost.˚ q entam florecia nesta Cidade onde deo
taes mostras de sua santidade he uirtude que na primeira uacante foi elleito
bpõ cõ mta satisfacaõ de todo pouo, porque em tudo trabalhaua por imitar o exemplo
do gloriosso padre Sam Teotonio prior do mosteiro de quē era muito deuoto.
Diga-se ainda que os grandes privilégios dados por Miguel
Salomão ao mosteiro em 1162, logo no
primeiro ano do seu episcopado, podem estar relacionados com a sua procedência
de Santa Cruz. O terceiro argumento de Aires Nascimento passa pela consideração
que o epíteto de beatissimus (santo) no título da Vita Theotonii, não envolve uma
informação cultual, mas apenas um juízo de santidade. De acordo com a sua opinião
há que atribui-lo não ao original, mas à cópia, esta derivada de momento
posterior ao da canonização de Teotónio, que o texto ainda não conhece nem nele
estão presentes narrativas de milagres post mortem que dessem pretexto a
uma promoção do culto. Mas não podemos negar que estamos na iminência de uma
canonização, não só pela data em que se realizou, no primeiro aniversário da
sua morte, que nos permite pensar que foi desde logo planeada a seguir ao
funeral, mas também por expressões que se encontram no texto como famulus
Dei (servo de Deus) e sucut nobis sanctus referebat
(segundo o santo nos referia). A instrução do processo de canonização parece
estar a decorrer, conforme transparece da passagem em que o autor nos refere
que sanctissimos illius actus senioribus meis ac per hoc sapientioribus
plenarie describendos relinquo (deixo que a descrição pertinente dos
actos da sua excelsa santidade seja feita pelos meus anciãos que por isso mesmo
são mais sabedores). Em meu entender, este passo insinua não só que era um
jovem discípulo, mas também a existência de um grupo de anciãos responsável
pela condução do processo de canonização. Podemos admitir facilmente que o
autor antecipasse o evento, registando-o desde logo, em mais uma demonstração da
finitude ad saecula saeculorum que envolvia toda a produção do scriptorium
crúzio.
Avaliadas
que foram as diferentes propostas de datação do manuscrito, concluímos pela
admissibilidade de a Vita Theotonii
ser um autógrafo; a hipótese primeiramente avançada por Alexandre
Herculano, o que não quer dizer que todas as suas informações sejam fidedignas.
Se um dia se identificar o autor gráfico do texto, creio que estará também
encontrado o seu autor intelectual. Apesar de admitirmos que o texto foi produzido
em cerca de 1162, não será de
considerar a autoria de
Domingos Salomão, proposta por José Antunes, pois, nesta data, apesar de ainda
estar vivo, já não seria um jovem discípulo. O perfil do candidato à autoria
intelectual do texto parece corresponder mais ao de Paio,
tal como este é descrito por frei Timóteo Mártires: (1) discípulo de São Teotónio; (2)
bom letrado de grande virtude,
em concordância com as características do texto e com a sua carreira; (3) Prior Crasteiro do Mosteiro de São
Vicente (entre 1174 e 1180),
pelo que poderia ser ele o veículo de transmissão da tradição do nascimento de
Afonso Henriques em 1106 para esse
mosteiro;
(4) seria bispo de Évora em 1181, afastando-se ainda mais de Santa
Cruz onde, alguns anos mais tarde, surgiria uma tradição diferente sobre a data
de nascimento do nosso primeiro rei; (5) faleceu a 8 de Setembro de 1204, podendo, portanto, ser um jovem e
talentoso discípulo em 1162. A
confirmação ou não desta possibilidade poderá ser dada pela análise comparativa
das características gráficas da Vita
Theotonii com a eventual documentação existente escrita
por Paio,
como cónego de Santa Cruz, prior crasteiro de S. Vicente ou bispo de Évora, que
não foi objecto de estudo» In Abel Estefânio, A Data de Nascimento de Afonso I, Medievalista, nº 8, 2010, Instituto de
Estudos Medievais, direcção de José Mattoso, ISSN 1646-740X.
Cortesia de
Medievalista/JDACT