«(…) A memória é uma doença também, pois vai crescendo mesmo
contra nossa vontade. Quando naquele dia do regresso, a 13 de Setembro (e isto
são restos do relato que dona Isabel me foi fazendo, já eu mulher e casada), o
tempo alterou-se. Sabeis, no Norte, como é. De repente neblina, chuva, frio,
mesmo em pleno Verão. Bispos, fidalgos, todo o pessoal se aconchegou na fila de
vinte carroças no regresso a Trancoso. Recordo sobretudo o mordomo-mor, senhor
de Albuquerque, todo resguardado no seu tabardo espesso de aguadeiro, grande
demais para ele, chamar el-rei e propor-lhe outra via, mais curta, a velha
estrada de lajes romanas, já com mau piso, para fugirmos à trovoada que se
avizinhava... Com a precisão de um ourives, de tudo o que me ficou na memória
antes de adormecer, recordo o fulgor das pedras de prata, cristal e calcedónia que
ornamentavam os botões da veste de el-rei e a sua bolsa presa à cinta, sobre o
saio. El-rei adoptava o alfrês ornamentado, a pedras, e o ouro sobre o seu corpo.
Dona Isabel, sempre resguardada e simples, poucas jóias levava. Ó minha dona
Doce, não sei que almadraque o bruto do estalajadeiro nos colocou sobre as
tábuas desta cama que os percevejos roem e onde se passeiam, pois que tenho as
costas tao doridas, como se as tivessem fustigado! E de resto, onde ia o pobre
homem buscar seis libras para comprar um almadraque digno de uma Rainha?
Pois bem, voltemos à história. Meu sogro festejava a paz e dentro
de pouco tempo, em Outubro, o seu trigésimo sexto aniversário. E era rei há,
dezoito anos, após a morte do pai. E que vida cheia já tivera, vida onde eu me
ia integrar como uma peça articulada numa máquina construída por gigantes! Tive
a sorte de receber por mãe adoptiva uma mulher de carisma, santa e bela, que
tinha uma ascendência tão antiga como muitas gerações deste nosso mundo. A sua
estirpe provinha de santos, reis, imperadores e homens e mulheres cuja
santidade era de grandeza espiritual inequívoca. Nascera em Aragão, de onde
trouxe, mais tarde, um irmão, Pedro, filho ilegítimo mas de grande coração e um
dos seus mais fiéis amigos. Aragão, limitada por ricas províncias, mas
acidentada, montanhosa, onde, no Norte, furam os céus os montes Perdido,
Aneto e o de La Madaleta. A oeste e sudoeste, o Moncaya. Isto
contava ela, porque do resto já, não me recordo. Região rica em gado com terras
de regadio, e contribuiu a terra da minha santa mãe para a reconquista aos
alarves e brutos bárbaros da moirama.
Dona Isabel nasceu em Aragão, como sabeis, neta do Conquistador, Jaime, e de dona Violante,
senhora da mais alta estirpe. Foi nesse tempo que se conquistaram as ilhas
Maiorcas e os Reinos de Múrcia e Valência. A mãe de minha amada sogra era irmã,
vede que felicidade e como os céus são propícios às grandes almas! da santa
Isabel da Hungria. Talvez os seus cabelos louros e a sua tez branca viessem do
sangue germânico, dos Hoenstaufen, porque o pai, Pedro III de Aragão, era casado
com dona Constança dessa família..., filha do rei da Sicília, e neta de
Frederico II da Alemanha... Ah, minha querida, deixemos esses pormenores que o
tempo acaba por apagar e só nos velhos alfarrábios deixam o seu traço obscuro!
Mas orgulho-me, que Deus me perdoe, de os meus filhos poderem gabar-se, coisa
que não fazem de resto, mas se quisessem..., dessa augusta ancestralidade. Dona
Isabel de Aragão, a Santa, a mulher que fez de Dinis I o rei que foi... Estamos
sós e vós conheceis os factos. Bem escreveu ele um dia, num dos seus arroubos
de sinceridade, porque, apesar de mau marido e mulherengo, nunca a deixou de
querer e amar, aquele poema; como era? Esperai, que me vem à memória;
«Pois que Deus vos
fez, Senhora,
fazer do bem sempre o
melhor
e dele ser tão
sabedora».
Agora o resto, deixai-me pensar... A minha memória, a minha
memória...
«E pois sabedes
entender
sempre o melhor e bem
escolher,
verdade aos quero
dizer».
In Seomara Veiga Ferreira, Inês de Castro, A Estalagem dos Assombros,
Editorial Presença, Lisboa, 2006, ISBN 978-972-23-3716-8.
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