«A coragem que vence o medo
tem mais elementos de grandeza que aquela que o não tem. Uma começa
interiormente; outra é puramente exterior. A última faz frente ao perigo; a
primeira faz frente, antes de tudo, ao próprio temor dentro da sua alma». In Fernando Pessoa
«(…) Vinha
o caminhante de nascente para poente, calhara assim o caminho e o passeio, mas,
por ter de ladear uma grande alverca, virou para o sul em curva, ao longo da margem.
Para o fim da manhã começará a aquecer, por enquanto há uma brisa frescal e
límpida, lástima não poder guardá-la no bolso para quando viesse a ser precisa
na hora do calor. Ia José Anaiço discorrendo estes pensamentos, vagos e
involuntários como se não lhe pertencessem, quando deu por que os estorninhos
tinham ficado para trás, esvoaçavam além, onde o carreiro faz a curva para
acompanhar a lagoa, procedimento sem dúvida extraordinário, mas enfim, como se
costuma dizer, quem vai vai, quem está está, adeus passarinhos. José Anaiço
acabou de contornar a alverca, quase meia hora de passagem difícil, entre
espadanas e silvados, e retomou o caminho primeiro, na direcção em que antes
viera, de oriente para ocidente como o sol, quando de súbito, vruuuu,
apareceram outra vez os estorninhos, onde teriam estado eles metidos. Ora, para
este caso não há explicação. Se um bando de estorninhos acompanha um homem em
seu passeio matinal, como um cão fiel ao dono, se espera por ele o tempo de dar
a volta a uma lagoa e depois o segue como antes vinha fazendo, não se lhe peça que
diga ou averigue os motivos, pássaros não têm razões mas instintos, tantas
vezes vagos e involuntários como se não nos pertencessem, falávamos dos
instintos, mas também das razões e dos motivos. E também não perguntemos a José
Anaiço quem é e o que faz na vida, donde veio e para onde vai, o que dele
houver de saber-se só por ele se saberá, e esta discrição, esta parcimónia
informativa, deverão igualmente contemplar Joana Carda e a sua vara de
negrilho, Joaquim Sassa e a pedra que atirou ao mar, Pedro Orce e a cadeira
donde se levantou, as vidas não começam quando as pessoas nascem, se assim
fosse, cada dia era um dia ganho, as vidas principiam mais tarde, quantas vezes
tarde de mais, para não falar daquelas que mal tendo começado já se acabaram,
por isso é que o outro gritou, Ali, quem escreverá a história do que poderia
ter sido.
E agora esta mulher,
Maria Guavaira lhe chamam, estranho nome embora não gerúndio, que subiu ao
sótão da casa e encontrou um pé-de-meia velho, dos antigos e verdadeiros que
serviam para guardar dinheiro tão bem como uma casa-forte, simbólicos pecúlios,
graciosas poupanças, e achando-o vazio pôs-se a desfazer-lhe as malhas, por
desfastio de quem não tem outra coisa em que ocupar as mãos. Passou uma hora e
outra e outra, e o longo fio de lã azul não pára de cair, porém o pé-de-meia
parece não diminuir de tamanho, não bastavam os quatro enigmas já falados, este
nos demonstra que, ao menos uma vez, o conteúdo pôde ser maior que o
continente. A esta casa silenciosa não chega o rumor das ondas do mar, de
passarem aves a sombra não escurece a janela, cães haverá mas não ladram, a
terra, se tremeu, não treme. Aos pés da desenredadeira o fio é a montanha que
vai crescendo. Maria Guavaira não se chama Ariadne, com este fio não sairemos
do labirinto, acaso com ele conseguiremos enfim perder-nos. A ponta, onde está.
A primeira fenda apareceu numa grande laje natural,
lisa como a mesa dos ventos, algures nestes Montes Alberes que, no extremo
oriental da cordilheira, compassadamente vão baixando para o mar e por onde
agora vagueiam os mal-aventurados cães de Cerbère, alusão que não é descabida
no tempo e no lugar, pois todas estas coisas, mesmo quando o não parecerem,
estão ligadas entre si. Expulso, como foi dito, da pitança doméstica, e
portanto forçado pela necessidade a recordar na memória inconsciente manhas dos
seus antepassados caçadores para conseguir filar qualquer desgarrado láparo, um
desses cães, de seu nome Ardent, graças ao finíssimo ouvido de que está dotada
a espécie, terá percebido o estalar da pedra e, só não rosnando porque não pode,
veio para ela, dilatando os narizes, de pêlo eriçado, com tanto de curiosidade
quanto de medo. A fenda, subtil, lembraria a observador humano um risco feito
com a ponta aguçada de um lápis, muito diferente daquele outro traço com um
pau, em terra dura, ou na poeira solta e macia, ou na lama, se com tais
devaneios perdêssemos nós tempo. Porém, enquanto o cão se aproximava, a fenda
alargou-se mais, tornou-se funda e avançou, rasgando a pedra, até aos extremos
da laje, e depois para lá e para cá, cabia dentro a mão inteira, o braço em
grossura e comprimento, se estivesse aqui homem de coragem para medir-se com o
fenómeno. O cão Ardent rondava, inquieto, mas não podia fugir, atraído por
aquela serpente de que já não se via nem a cabeça nem a cauda, e subitamente
perdido, sem saber de que lado ficar, se em França, onde estava, se em Espanha,
já distante três palmos. Mas este cão, graças a Deus, não é dos que se acomodam
às situações, a prova é que, de um salto, galgou o abismo, com perdão do
evidente exagero vocabular, e achou-se do lado de aquém, preferiu as regiões infernais,
nunca saberemos que nostalgias movem a alma de um cão, que sonhos, que
tentações». In José Saramago, A Jangada de
Pedra, Editorial Caminho, 1986, 16ª Edição, Reunidos, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-210-289-6.
Cortesia de
Caminho/JDACT