«Ninguém me é
estranho, se for bom. A natureza é só uma para todos; a diferença está no
carácter». In Menandro (342-C.242 a. C)
História de Arsínoe
II, Rainha do Egipto
«Nas veias de Arsínoe
Filadelfa, rainha do Egipto, corre o mesmo sangue glorioso que inflamou o
espírito sonhador e visionário de Alexandre. A mesma paixão política a anima, e
consome, e a ela dedicará com extraordinária vitalidade toda a sua existência.
Filha de Ptolomeu Soter, irmão e companheiro do grande rei da Macedónia,
fundador da dinastia lágida no majestoso país do Nilo, Arsínoe viria a cumprir
um destino a um tempo trágico e glorioso. No fausto dos palácios imperiais
conhece o esplendor raro dos magnificentes dias passados nos salões faraónicos
ou entre os nenúfares e as rosas que perfumam os jardins. Mas sobre a sua bela
cabeça coroada oscilou sempre, hesitante, a temível espada de Dâmocles. Muitos
conspiraram na sombra, desejando a sua morte e a de seus filhos, cegos pela
ânsia de poder. Urdiram intrigas, alianças, traições, revoltas, assassínios.
Mas por entre os dedos caprichosos das três Parcas corria ainda, ininterrupto,
o fio da sua vida. Arsínoe II havia de deixar um magnífico legado àquela que era a
província mais fértil do império de Alexandre. Uma exuberante e poética que convida
a sentir de forma quase palpável a magia intensa e subtil do universo egípcio
do século III a. C.
A morte da águia
Na estação das
cheias a águia adoeceu. O seu estado agravou-se subitamente. Perdeu o apetite,
as penas caíram-lhe, o olhar perdeu o brilho. Há no entanto uma mão real que a
sustém e alimenta. A águia reconhece a sua ama: ergue a cabeça e estende o
bico, mas os olhos velam-se-lhe. Um fio de baba escorre-lhe entre a penugem, as
patas tombam flácidas e o bico cerra-se. Nunca mais engolirá uma presa! A mão
da rainha, que a segurava pela cabeça tentando em vão deter a morte, retira-se
lentamente, enquanto os olhos globulosos do animal, nos quais a íris parece
flutuar como um ovo num prato, se enchem de um líquido avermelhado. Um brilho
fugaz ilumina o olhar da soberana. Como podia ela ter esquecido a profecia do
sumo-sacerdote de Ámon, que lhe fizera saber que um animal da sua estima a
antecederia na morte? A águia jaz sem vida a seus pés, insignificante molho de
penas, inofensiva. A rainha ergue-se com dificuldade. A náusea tolda-lhe o
olhar. Doem-lhe as costas. As pernas trôpegas incomodam-na. Com a mão adornada
de anéis, endireita na cabeça a peruca que ultimamente usava, mais para
esconder a calvície devastadora do que por elegância mundana, à moda egípcia. Sai
da gaiola às arrecuas, e lança-se em corrida desenfreada pelo jardim, tanto
quanto os seus membros trémulos ainda lho permitem. Obnubilada pelo horror de
um fim próximo, não tem um olhar para o Museion, onde os sábios
convidados, vindos de todo o mundo, se entregam à pesquisa, nem para a famosa Biblioteca
de Alexandria, tão invejada por Pérgamo e onde todo o saber do tempo se acumulava,
nem para o sumptuoso palácio onde seu esposo e irmão Ptolomeu Filadelfo agora
reina. Atravessa o jardim percorrido pela brisa do entardecer. Aquela que nunca
mais verá florir jasmins e rosas, porque meses depois já terá desaparecido,
ladeia a custo as fontes borbulhantes, estrebucha sob os capitéis das colunas
do pavilhão real que se debruça sobre o mar de Alexandria, e cai desmaiada. As
escravas acorrem e levam-na para os seus aposentos. A sua saúde entra em
declínio acentuado: vómitos incontroláveis, frio gélido, paralisia. Algum tempo
depois entra em agonia e morre. Corria o ano de 270, sob a calma
imperturbável do céu egípcio. Arsínoe II Filadelfa, rainha do
Egipto, presumível descendente do sangue de Alexandre, filha do grande Ptolomeu
Sóter, fundador da dinastia de faraós macedónios, cessara de existir. Mãos
impacientes deslizam em busca do cordão de seda que a defunta sempre usava em
torno do pescoço, e retiram um pequeno frasco de prata envolvido em fino linho
de Bissos. O cadáver parece sobressaltar-se. Aproveitando a confusão, a
desconhecida julga que poderá passar despercebida, mas não teve o tempo
suficiente para convencer, seduzir ou subornar as carpideiras e os sacerdotes,
indiferentes à sua pessoa e à sua notoriedade e que não hesitarão em
denunciá-la caso a surpreendam.
Mesmo na morte
os velhos ódios acendem-se, e a loucura explode, pois cada um salda as suas
contas à sua maneira. Depois de uma vida de luxo e de prazer, má sorte seria
terminar os seus dias na cela sórdida de uma masmorra escura. Cá fora o vento
sopra, formando torvelinhos junto ao solo. Alexandria sufoca. A cidade está de
luto. No bairro dos embalsamadores, vapores inquietantes, odores suspeitos e
pesados, enrolam-se em turbilhão sobre os terraços das casas, nas quais se
afadigam os obreiros da eternidade. Uma multidão de vendedores de perfumes e
unguentos, astrólogos, adivinhos, magos e sacerdotes ondula num constante
vaivém entre lintéis, limiares e ombreiras, ouvindo-se o som abafado do
movimento de trancas e ferrolhos. Um fumo espesso cicia, escapando-se de
obscuras tinas de natrão onde os cadáveres esventrados se amontoam. O cais do
além jamais deveria ser pisado por alguém não autorizado. Era a lei. Quem o
fizesse, sofreria um castigo muito simples: não mais o poderia abandonar vivo.
À noite, um
vapor opaco flutua sobre o mar. Os fantasmas agitam-se, perturbados pelos
encarregados da vigilância que circulam entre as casas, fazendo tilintar as
armas. Espectros balançam-se sob os raios da lua, conhecidos e desconhecidos,
desterrados que morreram na prisão, uns trespassados por uma lança ou mordidos
por serpentes, outros lançados às feras. Arsínoe I, esposa repudiada de
Ptolomeu Filadelfo, é a primeira a aproximar-se. Foi depois de a mulher do
Filadelfo ter partido para o exílio em Coptos e aí ter morrido, que alguns
julgam ter lobrigado o seu fantasma no Bruquíon, bairro elegante de
Alexandria, junto ao palácio real, a saltar ao caminho dos passantes, querendo
obrigá-los a ir juntamente com ela assombrar o palácio do rei». In Maria
Lucília Meleiro, A Rosa de Alexandria, tradução de João Lourenço, Grandes
Narrativas nº 192, Editorial Presença, Lisboa, 2002 ISBN 972-232-961-8.
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