Procura
da poesia
«Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante
a poesia.
Diante dela, a vida é um sol
extático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários,
os incidentes
pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e
confortável corpo,
tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de
gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e
tentam a longa viagem.
O que pensas e o que sentes, isto
ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em
paz.
O canto não é o movimento das
máquinas nem o
segredo das casas.
Não é a música ouvida de
passagem; o rumor do mar
nas
ruas perto da linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e
esperança
nada significam.
A poesia (não tires poesia das
coisas)
elide sujeito e objecto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em
mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de
diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos
esqueletos de família
desaparecem nâ curva do tempo, é
algo imprestável,
Não recomponhas
tua sepultada e merencória
infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, não era cristal.
Penetra surdamente no reino das
palavas.
Lá estão os poemas que esperam
ser escritos.
Estão paralisados, mas não há
desespero,
há calma e frescura na superfície
intacta.
Ei-los
sós e mudos, em estado de dicionário».
[…]
Poema
de Carlos Drummond de Andrade, in ‘A Rosa do Povo’
In Carlos
Drummond de Andrade, A Rosa do Povo, Livraria José Olympo Editora, São Paulo,
1945.
Cortesia
de LJoséOlympio/JDACT