«É
campónio demais aquele que se sente magoado por uma mulher que o engana e não conhece
o bastante os costumes da Urbe, onde não nasceram sem engano os filhos de Marte,
Rómulo, filho de Ília, e o filho de Ília, Remo». In
Ovídio
Reia
Sílvia (ca. 753 a. C.)
«Conhecemos a história que parece
de ficção científica, embora sem os efeitos especiais, da fundação de Roma, da
qual Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso desconfiavam, e que exige no mínimo uma
certa candura da parte de quem a ouve ou lê. A lenda é, apesar das suspeitas, a
explicação mais divulgada e aceite sobre a fundação de Roma. Um par de gémeos do
sexo masculino, depositado numa cesta e deixado à mercê das águas do Tibre,
teria sido encontrado numa das margens do rio por uma loba. O animal pôde alimentar
os bebés humanos ali encontrados, salvando-os da morte certa. É ainda do conhecimento
geral o nome dos gémeos, Rómulo e Remo, sendo o primeiro apontado como o primeiro
rei de Roma e o segundo, desaparecido entretanto, é possível que morto pelo outro.
A história dos gémeos de Roma faz
lembrar Moisés abandonado à sua sorte num cesto nas águas do rio Nilo. A história
de Moisés é difícil de datar, tendo ocorrido quem sabe se por volta de 1500-1400 a.C.. Será em todo o caso
bastante anterior à lenda de Rómulo e Remo. São datas longínquas da nossa era
que apesar disso não nos devem intimidar. Estamos afinal de contas perante histórias
contadas ao longo de muitos séculos, partilhadas entre os povos e que são constitutivas
de uma civilização. Não pertencem por isso ao passado, mas a um presente constantemente
renovado e contado outra vez.
São além do mais histórias que
também por terem sobrevivido ao longo de séculos têm a autoridade de impedir interferências
e alterações substanciais na sua estrutura. O historiador Flávio Josefo conta o
episódio do resgate de Moisés das águas nas Antiguidades Judaicas, obra
que data do fim do primeiro século da nossa era. Sobre Moisés, explica o éptimo
do nome: … retirado das águas. Assim
como a maré que extravasou para as margens motivou a descoberta dos gémeos, a
ausência de uma corrente forte determinou que o cesto com aquele que seria um homem
muito humilde, mais que todos os homens que há sobre a face da terra fosse levado
docemente até uma das margens do Nilo para aí ser recolhido pela filha do faraó
do Egipto. Se não fossem as águas calmas, nem Roma nem o povo judaico teriam existido.
Mas antes de nos determos nos pormenores da história da fundação de Roma
e da sua protagonista feminina, Reia Sílvia, recuemos um pouco no tempo,
até ao mito fundador de Roma, que nos daria a história dos gémeos Rómulo e Remo.
Ainda hoje repetimos que Roma não
foi feita num dia para justificarmos a demora na execução de uma tarefa complexa,
tão difícil, turbulenta e prolongada como a fundação daquela que seria a capital
do Império. Fugido à destruição causada pela guerra de Tróia, cuja data não é conhecida,
mas que se pensa ter coincidido com o fim da Idade do Bronze, por volta de 1194 a.C., Eneias, célebre guerreiro
troiano e protagonista da Eneida de Virgílio, terá escapado aos
gregos e chegado à região do Lácio, na Itália. Aí terá edificado a cidade de Lavínio,
nome que seria atribuído em homenagem à sua mulher, Lavínia. O filho de ambos, Ascânio,
fundaria a lendária Alba Longa, situada na mesma zona de Itália, a qual
daria origem à dinastia dos reis albanos. Cerca de quatrocentos anos mais tarde,
após nascimentos e mortes, histórias de batalhas e sucessões sangrentas, encontramos
dois irmãos desta linhagem dos albanos: Amúlio e Numitor». In Carla
Hilário Quevedo, As Mulheres Que Fizeram Roma, A Esfera dos Livros, Lisboa,
2015, ISBN 978-989-626-688-2.
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