Paris, princípios de Agosto de 1977
«(…) Eu, eu já não tenho forças, deixo-me cair no chão como um corpo
inerte a quem já nada esquenta, vejo o mundo circular como uma névoa num
turbilhão que de mim se afasta e que me rejeita, tenho cinquenta e três anos,
sinto-me exaurida e sem forças, e sem um núcleo que me sustente em meio às
coisas que me fazem falta, tenho os pés inchados, as pernas pesadas
arrastam-se, as mãos tacteiam numa busca inútil, estou no meu quarto e levanto-me,
sinto uma violenta dor de cabeça, entro em pânico, o que poderei fazer para me trazer
de volta, o que poderei fazer para fugir a esta sensação de aniquilamento que durante
anos venci mas que hoje me destroça, o que poderei fazer para deixar que o
sangue me percorra trazendo-me consigo o mundo que me rodeia e cerca?
Há pessoas que vivem muitos anos, outras que morrem depressa, outras
ainda que se arrastam, e eu sento-me nesta poltrona e olho em volta, a sala é
ampla, os espaços altos, a mobília é renascença, os cortinados espessos e os
tapetes persa, o gira-discos toca, ininterruptamente mas sem que o milagre se faça,
a minha voz fixou-se nas gravações que hoje restam, mas já nada ma poderá
devolver, nem trazer de volta. Olho para mim no espelho emoldurado e vejo-me
reduzida a um universo cada vez mais fechado e hermético, devolvida que fico às
poucas coisas que permanecem. De vez em quando vou à janela e observo as
pessoas que passam, e a tristeza infiltra-se, e a amargura cava sulcos cada vez
mais profundos no meu rosto, e nas minhas ancas. Recordo-me dos barulhos, das
sombras, das pessoas que à minha volta pareciam ter forma e vida própria.
Estavam ali. Imutavelmente e desde o princípio dos séculos. Estavam ali como se
pertencessem, de facto, à luz, ao espaço, às flutuações do ar, e ao tempo em
que se movimentam. Estavam ali desde sempre e por direito legítimo, sem que
isso as preocupasse ou fosse para elas motivo de dúvidas ou angústias. Estavam
ali porque pertenciam àquelas paredes, àquelas salas, porque era delas o ar que
respiravam, porque faziam parte integrante daquela época e daquele cenário,
como se não pudesse ter sido nunca de- outra qualquer maneira, estavam ali sem
que isso constituísse para elas motivo de reflexão ou de mistério, estavam ali
e tinham contornos definidos, rigorosos e precisos, como uma equação matemática.
Movimentavam-se naturalmente pelas salas, tinham frases certas e convictas para
trocar entre si que lhes corroboravam e confirmavam a existência, pareciam possuir
dentro de si as certezas que lhes tornavam a vida fácil, e nos pés uma bússola
que lhes guiava os passos e as mudanças.
E eu ouço a minha voz porque só assim me reasseguro de uma identidade
que, de outro modo, me escapa, e porque só assim me certifico que existi de
facto. Ouço-a todos os dias, vezes sem conta, ouço-a porque só ela me alimenta,
ouço-a porque tremo ao pensar que, de mim, só ela, como recordação, resta,
ouço-a porque só ela me devolve e me traz de volta, e esqueço-me que, para além
dela, nunca existi de facto, de uma maneira natural e completa. Hoje ouço a minha
voz para por momentos me iludir porque sei que de mim se trata, hoje ouço a
minha voz para por momentos esquecer a minha total inépcia para ser uma pessoa
como as outras, com raízes num chão que a sustente e que lhe devolva a firmeza
e a segurança, hoje ouvir a minha voz é, o que me resta, e por mim adentro
entra. Reconheço-lhe o timbre, as sonoridades e as ressonâncias, as suas
proezas ressuscitam-me e encantam-me, e reencontro nela o que me tornou única, e
fez de mim uma prima donna absoluta».
In
Rita Cerdeiros, Maria Callas, De Lúcia a Violeta, Editora Pergaminho, Lisboa,
1998, ISBN 972-711-139-4.
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