1207,
Fevereiro, 20
«As notícias são escassas, mas a fonte
é segura: a 20 de Fevereiro de 1207,
Fernando Afonso, filho ilegítimo de Afonso Henriques e antigo grão-mestre da Ordem
do Hospital, sucumbiu ao poder do veneno,
quando estava de volta a Portugal depois de uma ausência de trinta três anos.
Episódio obscuro e misterioso, a sua referência nesta obra não se deve ao
acontecimento em si, mas ao seu protagonista, o primeiro bastardo real da história
da monarquia portuguesa. Afonso Henriques casou tarde, em 1146, quando já tinha 37 anos de idade,
e as parcas fontes para esses anos remotos não se preocuparam muito com os
amores do rei. Numa cristandade fértil em bastardos reais, o Conquistador não deixou prole numerosa. Temos apenas conhecimento
de dois: um Pedro Afonso de que se sabe pouco, sendo certo que foi senhor
de Arega e de Pedrógão, e que desempenhou funções importantes no final do reinado
do seu pai, pois a documentação referencia-o como alcaide de Abrantes, em
1179, e como alferes d’el-rei entre 1181 e
1183; antes nascera Fernando Afonso, que viria a ter um relevante
papel político no reino e na cristandade.
Fernando Afonso terá nascido por
volta de 1140, fruto da relação de
Afonso Henriques com dona Châmoa Gomes. Esta dama pertencia aos extratos mais
elevados da nobreza, pois era filha de Nunes Pombeiro, antigo conde de Toroño, que
professara no mosteiro de Pombeiro após o recontro de Arcos de Valdevez. Dona Châmoa
casara em primeiras núpcias com Paio Soares Maia, de quem tivera três filhos, e
depois tornara-se monja no mosteiro de Vairão. Aparentemente não tinha vocação para
a vida contemplativa, pois relacionou-se com Mem Rodrigues de Togues, de quem teve
Soeiro Mendes Facha, e depois tornou-se barregã de Afonso Henriques e deu à luz
Fernando Afonso. A ligação do rei com Châmoa Rodrigues terá facilitado (ou
consolidado) a ascensão política de parentes próximos e, na verdade, em 1147, o alferes-mor do reino era o seu filho,
Pedro Pais, um dos rebentos de Paio Soares Maia.
Afonso Henriques teve herdeiro legítimo
desde 1147, quando nasceu o infante Henrique,
o seu primogénito; este infante faleceu em Junho de 1155, mas foi logo substituído pelo infante Sancho, que nascera a
11 de Novembro de 1154. No entanto, quando
o pequeno Sancho ainda andava pelas primícias da sua vida, já Fernando Afonso se
aproximava da idade adulta e podemo-nos perguntar sobre o modo como teria decorrido
a sucessão no reino de Portugal, se Afonso Henriques tivesse falecido nestes anos.
Apesar da mácula da ilegitimidade, o jovem bastardo seria sempre um concorrente
ao pequeno infante. E a documentação revela-nos que Fernando Afonso começou
a frequentar a corte por volta de 1519,
logo após o falecimento da rainha dona Mafalda, e que em 1166 surgia em posição de destaque, sendo o primeiro confirmante de
um documento régio que o referencia explicitamente como filho do monarca. Tinha
então cerca de 25 anos de idade e o seu meio-irmão Sancho ainda só andava pelos
11 anos.
O seu peso político torna-se ainda
mais notório em 1169, pois no rescaldo
do desastre de Badajoz tomou o cargo de alferes-mor do reino, em substituição do
meio-irmão Pedro Pais. No momento em que o rei fraquejava, o bastardo ascendia na
hierarquia político-militar, e no ano seguinte terá acompanhado o infante Sancho
numa nova investida mal sucedida sobre Badajoz. Haveria então uma relação de confiança
entre os dois irmãos, pois entre Setembro de 1172 e Abril de 1173 Fernando
Afonso passou a ser o alferes-mor de Sancho I. O herdeiro do trono atingia
então os 18 anos e pouco depois o bastardo abandonou o reino, pois já se encontrava
no reino de Leão em Setembro de 1173,
onde também já residia seu meio-irmão Pedro Pais. Nos vinte e cinco anos seguintes,
Fernando Afonso permaneceu fora de Portugal, mas predominantemente na Hispânia;
em data incerta tornou-se templário, mas depois transferiu-se para a ordem do Hospital,
e em 1198 tornou-se no mestre da ordem
na Hispânia. Embora distante do seu reino de origem, manteria boas relações com
o seu irmão Sancho I, que entretanto já subira ao trono de Portugal, pois nesse
ano de 1198 o monarca encarregou-o
de ir a Roma entregar o censo do reino.
Tendo deixado a Península Ibérica,
Fernando Afonso experimentou novas aventuras e em 1202 participou na quarta cruzada. Nesse mesmo ano, foi eleito grão-mestre
da ordem dos Hospitalários, e dispomos de documentação que nos mostra que o novo
grão-mestre se manteve activo na Terra Santa até 1206. Foi o único membro da família real portuguesa a atingir a posição
cimeira de uma grande ordem militar. Entretanto, a partir de 1205 terá contestado os direitos régios
de Sancho I, quando este já empunhava o cetro português havia vinte anos. Estranha-se
tamanha demora para questionar a realeza do irmão, mas é certo que renunciou ao
grão-mestrado da ordem e partiu de regresso a Portugal. Poucos meses depois de ter
reentrado no reino, foi assassinado. Terminava assim ingloriamente os seus dias
o primeiro bastardo real de Portugal; o estigma da ilegitimidade não o impediu de
realizar uma carreira brilhante entre os cavaleiros da cristandade, mas o apelo
da terra pátria tornou-se numa armadilha fatal. A sua morte queda envolta em mistério,
tal como o seu regresso a Portugal e nada se sabe sobre o modo como se relacionou
com Sancho I nestes seus últimos meses de vida». In João Paulo Oliveira Costa,
Episódios da Monarquia Portuguesa, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2013,
ISBN 978-989-644-248-4.
Cortesia
de CL/TDebates/JDACT