«(…) A Ásia arrastou para o mar
portugueses d o litoral e do interior, do norte e do sul, das localidades mais
remotas, mas continuava a obsessão de pular o mar e estender o corpo pelo solo
marroquino. Para materializar o sonho levantaram-se poderosas fortalezas, esvaziaram-se
tesouros, ceifaram-se vidas. A obsessão adubou com milhares de corpos e um rei,
formoso, os campos de Alcácer Quibir. O que fazia correr estes homens da nação
barbada? O desejo de saber, o espanto; a febre da riqueza e do poder; a fome de
humanos para a brutalidade do trabalho e para o prazer; o medo com as suas
correias de obediência; o desejo de libertação pessoal no rasto da aventura; a
fé que ajudava a suportar as intempéries e a superar os perigos, mas também
alimentava o espírito de cruzada e fortalecia, silenciava e aplacava os
protestos da consciência. Nenhum destes estímulos agiu isolado. Mas sem o
comércio e o dinheiro, sem as descobertas na construção naval e na arte de navegar,
sem a artilharia de metal, as espingardas e as cotas de malha, sem a
verticalidade dos comandos, sem a riqueza acumulada e os empréstimos para pagar
os navios, as mercadorias, as armas, os mantimentos, os soldos, que fariam os desejos e a vontade?
Nos mares da Índia
Nos primeiros anos, os
acontecimentos no Índico e no Pacífico atingiram um ritmo alucinante. Os
portugueses aterrorizaram os mares: descobriram e ocuparam novas rotas;
promoveram a conversão à religião cristã com pregações, mão armada, novos
métodos linguísticos e martírio; afadigaram-se na trasfega de riquezas, de
ideias, de técnicas, de escravos, de plantas e de animais. Viviam com extrema
violência em guerra e paz armada e milhares desapareceram no fundo dos mares.
Tinham fome de ouro e de honra e coragem e medo para além dos limites. Trocaram
corpos, ideias, cerimónias, representações, roupas, sabores, vocábulos. Mudaram
de campo. Intensificaram o confronto e a troca de culturas. Estes
acontecimentos marcaram duradoiramente o nosso imaginário. Não espanta por isso
que os cronistas dediquem quase todo o espaço aos heróis do mar e da guerra e
muito pouco à acção dos reis. Foram ofuscados pela glória dos capitães. Sigamos
o seu rasto.
No dia 25 de Março de 1500 saía do Tejo uma armada comandada por
Pedro Álvares Cabral. [O relato segue a
narrativa dos cronistas, Barros. Castanheda, Gaspar Correia, e de autores anónimos.
Desse património riquíssimo, numa escrita que atinge por vezes o sublime, organizei
um fio que intenta ligar os principais acontecimentos políticos e militares e
aqueles que mais desnudam o humano. Os acontecimentos aqui expressos resultam
duma escolha, baseada por sua vez noutras escolhas, as dos cronistas e as dos
informadores dos cronistas. Os narradores são portugueses, alguns deles
testemunhas presenciais dos acontecimentos. Por trás dos seus discursos é
possível, aqui e ali, ouvir a voz dos outros e divisar-lhes o rosto]. O
povo cobria as praias e os campos de Belém. Batéis, ornados de librés e
bandeiras, rodeavam as naus, mas o que mais levantava o espírito eram as
trombetas, os atabaques, os sestros, os tambores, as flautas, os pandeiros, até
as gaitas. Tudo os homens buscavam para tirar a tristeza do mar. A esquadra,
constituída por treze naus, navios e caravelas, mil e duzentos homens e oito
frades franciscanos, levava mantimentos, artilharia e munições que chegavam para
dois anos. Poucas cidades ou vilas de Portugal dispunham de tantos homens e
provisões. O seu destino era Calecut, a cidade do Malabar que abastecia de pimenta
a rota do Levante pelo Mar Vermelho e o Golfo Pérsico.
Depois de Cabo Verde, os navios
internaram-se tanto na volta para dobrar o cabo da Boa Esperança que, a 24
de Abril, foram dar à costa de outro continente. Viram gente nua, não
preta, de bons corpos e rosto, de cabelos compridos e corredios. Não sabiam
línguas de Guiné nem arábico. Andam nus,
sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma cousa cobrir nem mostrar suas vergonhas.
E estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto. Os
navegantes desembarcaram em Porto Seguro. Bartolomeu Dias matou um tubarão e
lançou-o na praia. Seu irmão Diogo, almoxarife em Sacavém, levou um gaiteiro a
terra e, tomando os índios pelas mãos, dançou com eles. Ao som da gaita,
folgavam e riam. De noite fugiram dois grumetes num esquife. Preferiam a terra
nova à aventura da Índia. Ficaram também dois degredados. Depois de reconhecer
a costa brasileira entre Porto Seguro e o Caabo de Santo Agostinho, uma nau
regressou a Lisboa para dar/confirmar a boa nova. Na passagem do Cabo da Boa
Esperança a tempestade engoliu, de uma assentada, quatro naus com todos os
ocupantes. O capitão Bartolomeu Dias, o primeiro navegador a dobrar o Cabo,
ficou sepultado no profundo». In António Borges Coelho, Na Esfera do
Mundo, Editorial Caminho, 2013, ISBN 978-972-212-642-7.
Cortesia Caminho/JDACT