«Ele
não detecta nenhum sopro. Nem movimento. Nem vida. Acabou. Ao enfiar a mão
debaixo do tecido amachucado da camisa dela, os seus dedos tocam num seio
pequeno: já frio, raiado de azul-claro, como mármore maleável. Ela não é mais do
que uma estátua mole. As curvas geladas deslizam confortavelmente sob o calor da
concha da sua mão, que lhe acaricia a pele e se surpreende com esta estranha impassibilidade.
Ao contemplá-la, ele vê por fim a imagem que desejava há tantos meses. Ela é bela.
Silente e sem vida, ela é na verdade bela. O reflexo perfeito voltou e o
espelho está de novo sem mácula. Ele imagina o calor da sua própria carne dentro
daquela imobilidade fria e arrepia-se. Sabe que tem de o fazer».
A
sua última duquesa. Toscânia 1559
Um calor pesado instalara-se na tarde,
obrigando a paisagem a uma imobilidade cintilante. A casa imponente era alta, maciça
e quadrada, e o tom ocre da pedra e o vermelho descorado dos telhados com goteiras
davam um ar mais suave aos muros semelhantes aos de uma fortaleza; à luz clara do
dia, as ameias arqueadas dos telhados projectavam colheradas de sombras azul-escuras
a todo o comprimento dos muros. As cigarras cantavam ritmadamente, sem parar, ora
em coro ora em dessintonia, e uma sensação soporífera de letargia quente pairava
sobre o castelo como um cobertor cozido pelo sol. Uma porta abriu-se com ruído nas
traseiras da casa e, dando um grito, uma mulher jovem saiu a correr, agarrada às
saias e com a respiração entrecortada. Olhou para trás de relance, arquejou e aumentou
a velocidade. Outro vulto, masculino, saiu pela mesma porta atrás dela. A sua sombra
lembrava uma mancha de tinta suja debaixo dos pés. Por um momento, foi como se
as cigarras sustivessem o fôlego: os únicos sons no meio do silêncio
entorpecedor eram os passos assustados da rapariga e o andar mais pesado do jovem
que se aproximava depressa. Ela correu ao longo de um caminho entre canteiros de
flores e plantas, atravessou um deles frenética e, a lamuriar, dirigiu-se para a
vegetação mais alta juntos dos portões que conduziam à horta murada.
Ele apanhou-a e atirou-se a ela. Agarrou-a
pelos joelhos e derrubou-a. Ela levantou os braços para proteger a cara e, ao cair,
faltou-lhe o ar. Antes de ter tempo sequer para recuperar o fôlego, o rapaz soltou-lhe
as pernas e obrigou-a a deitar-se de costas, agarrando-a pelos pulsos e encostando-os
às ervas, ao lado da cabeça. Ela debateu-se, mas ele foi mais forte. Segurou-a pelas
ancas com os joelhos, e a cara dos dois jovens ficou a menos de trinta centímetros
de distância. Durante uma fracção de segundo, os olhares de ambos cruzaram-se. És
um patife, Giovani!, exclamou a rapariga, soltando uma gargalhada. Larga-me! Tu
és..., disse Giovanni, a arfar, demasiado vagarosa, mais nada. Vá..., admite! Sem
largar os pulsos finos dela, o rapaz apoiou-se ainda mais neles; apesar de continuar
a estrebuchar, a rapariga não conseguiu sentar-se. Acumulou saliva na boca e levantou
a cabeça. Giovanni sorriu. Tu não te atreverias, exclamou ele, mas ela respirou
fundo pelo nariz. Giovanni rolou e ficou deitado de costas, fora do seu alcance,
fazendo uma caret. Meu Deus, és nojenta, Lucrécia!
Lucrécia sentou-se, cuspiu para o
chão e em seguida deitou-lhe a língua de fora. Giovanni deixou-se ficar,
estatelado, com a cara meio escondida nas plantas emaranhadas; ergueu uma sobrancelha
e fez-lhe um sorriso trocista. Lucrécia atirou-se a ele, mas o rapaz agarrou-a
pelo pé, fê-la cair de costas, e ambos ficaram estiraçados no meio da
vegetação, a rir sem motivo. Uma voz ao longe sobressaltou-os. Lucrécia! Olharam
um para o outro. Lucrécia, cara, onde
estás? Suspirando, Lucrécia disse: Tenho de ir..., já devia estar de volta há
horas. Anda comigo, Vanni. O rapaz levantou-se de um salto, todo ele pernalta
como uma marioneta ansiosa, e estendeu os braços para ajudar a prima a erguer-se.
Ela pegou-lhe na mão e levantou-se, sorridente, mas, para sua surpresa, Giovanni
não retribuiu o sorriso. Em contrapartida, franziu um pouco o sobrolho, de repente
ficou atrapalhado e constrangido, esfregou os olhos com o punho e corou. A voz fez-se
ouvir outra vez.
Lucrécia passou os dedos pelos cabelos
e encontrou terra agarrada à testa; afastou-a e examinou a sujidade alojada debaixo
das unhas. Virou as mãos. Tinha as palmas esfoladas e sujas das ervas e rasgara
mais um vestido: o grande rasgão no sítio da anca não era do género daqueles que
se podiam consertar. Com o tecido roto a esvoaçar, começou a dirigir-se para à
casa na companhia do primo. A Giulietta vai zangar-se comigo outra vez, Vanni, disse.
Ela acha que eu devia... Lucrécia fez uma voz mais grave e uma careta, imitando
o ar solene e o nariz adunco da ama, comportar-me como uma herdeira Médici, com
uns impressionantes dezasseis anos. Empinou
o queixo, em jeito de troça, e a expressão de Giovanni desanuviou-se outra vez».
In
Gabrielle Kimm, A sua Última Duquesa, O que aconteceu a Lucrécia de Médici?, 2010,
tradução de Maria Duarte, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2012, ISBN
978-989-657-328-7.
Cortesia de Planeta/JDACT