«(…) A consciência de identidade
portuguesa reforçara-se com a epopeia oceânica que tinha Castela como seu
principal competidor e parceiro, mesmo durante os sessenta anos do governo
filipino. Aliás, Castela e Espanha reconheciam e todos os dias nomeavam, isolando-a,
a identidade portuguesa. E o Império foi o refúgio, a reserva, o suporte
material que permitiu a Portugal resistir ao abraço de Castela. As navegações e
conquistas eram exaltadas pelos historiadores, pelos autores de livros de
viagem, pelos poetas e contadas à sua maneira pelos heróis sobreviventes,
piratas e malandros anónimos que chegavam dos mares e regressavam aos lugares
portugueses mais recônditos. A cultura e a transmissão oral tinham então um peso
que hoje, facilmente, tendemos a subestimar. E mais ainda quando só olharmos
para os de cima. Na Peregrinação
e nos Lusíadas, obras
emblemáticas da cultura universal, os seus autores exaltam como tantos outros,
no louvor e na crítica, as façanhas dos aventureiros lusos. O mercantilista
cristão-novo Duarte Gomes Solis, depois de afirmar o óbvio, que os portugueses
rodearam o mundo todo com poucas embarcações e poucos soldados e chegaram à
Índia, conclui: foi a maior façanha que
jamais pode contar-se de nação algum.
Mas analisemos os acontecimentos
pelo outro lado, pelo lado dos que desejavam a união dos povos ibéricos, mais
precisamente a união de Portugal e de Castela. Nos finais do século XIV
tentaram juntar pela via do casamento e da força os dois estados peninsulares.
A parte mais nova e rica de Lisboa que crescera fora das muralhas foi saqueada
e o miolo urbano sujeito a um cerco prolongado e à fome. A tentativa falhou com
a eleição dum rei nacional nas Cortes de Coimbra de 1385 e a vitória nos campos de Aljubarrota. Cinco décadas mais
tarde, num parecer contrário à jornada de Tânger de 1437, o infante Pedro avisava que, na corrida para Além Mar,
Portugal sem Castela e os outros estados ibéricos não chegaria a bom porto. Afonso
V voltou a usar as armas para forçar a união e fracassou em Toro. João II e
Manuel I insistiram no casamento dos seus príncipes. Falharam. Entretanto, o Tratado
de Tordesilhas nascia da consciência, por parte de João II e dos Reis
Católicos, da necessidade da partilha e da convergência para descobrir e
explorar em exclusivo o mundo desconhecido. A rainha dona Catarina levou a
política de casamentos quase até ao limite e criou um partido favorável à junção
de Portugal aos Estados de Carlos V e de seu filho Filipe II. Essa política
levou à definição e radicalização do seu contrário, bem expressas, depois do
cerco de Mazagão, nas Cortes de 1562:
case El-Rei em França; trabalhai por que se crie nos costumes de Portugal; vista
à portuguesa; coma à portuguesa; fale à portuguesa.
Em 1580 muitos portugueses acreditaram que, sob o governo de Filipe
II, não haveria mais ladrões no mar e que
o dinheiro havia de nadar pelas ruas. Mas quando lemos o texto dos Acordos
de Tomar, podemos pensar que os homens (não havia mulheres) que entregavam o
reino ao rei Filipe de Castela eram tão nacionalistas como os que arriscavam a
cabeça pelo rei nacional António I. Os Acordos de Tomar insistiam quase
obsessivamente: a língua oficial será a portuguesa, os benefícios, as
fortalezas, as capitanias, as instituições, os tribunais ficarão em mãos
portuguesas. A aceitação de Filipe como rei de Portugal também incomodou alguns
fidalgos que tomavam o seu partido. As maiores Casas senhoriais portuguesas
formaram-se no rescaldo de Aljubarrota. Aquela gesta marcava os seus
pergaminhos. Também não faltaram letrados a defender, em 1580, que ao reino cabia eleger rei como o fizera em Coimbra em 1385. Há quem considere que nos 60 anos
de agregação a Castela a identidade hispânica funcionou e se revelou e se
sobrepôs à identidade nacional. O sentimento de identidade hispânica existiu e existe.
Até aos finais do século XIV os estudantes portugueses de Bolonha declaravam-se
hispanos como Pedro Hispano, o papa João XXI. Mas a partir de 1384 declaram-se lusitanos. No século XVI,
o humanista André Resende, em carta ao seu amigo castelhano Bartolomeu Quevedo,
escrevia hispani sumus (somos hispanos). E somos. Só que os
acontecimentos políticos e militares, parecem demonstrar que não prevaleceu o sentimento
de unidade hispânica mas a força militar, os interesses, a compra, a propaganda
e a permanência de guarnições militares de Castela até 1640». In António Borges Coelho, Os Filipes, Editorial Caminho, 2015, ISBN
978-972-212-740-0.
Cortesia de Caminho/JDACT