Uma mãe eficiente: dona Beatriz, infanta
e neta do duque de Bragança
«(…) Em primeiro lugar, os dados
brutos: só em ouro totalizava 22,5 marcos e 6 oitavas, e a prata 483,5 marcos e
5 oitavas, isto é, o equivalente a 5,1 quilo de ouro e 111 quilo de prata. Eram
de ouro as jóias de seu corpo, e de prata muitos dos objectos necessários à sua
câmara. Por outro lado, trata-se de um enxoval cujo uso era colectivo e se
estendia a uma comunidade de mulheres, uma vez que as damas da infanta aparecem
referidas em muitos dos itens. Para elas, havia uma mesa marchetada (isto é,
com embutidos), munida de castiçais e saleiros; uma profusão de peças de roupa
entre cotas (vestidos), opas e crespinas (toucas ou véus), e várias camas
munidas de todo o necessário (colchões, travesseiros, lençóis, etc.). Um total
de cerca de trinta arcas e cofres que continham uma extrema variedade de objectos
de uso pessoal e doméstico, incluindo as peças mais prezadas enquanto consumos
de prestígio.
Havia uma capela completa para as
devoções e funções religiosas privadas, de que faziam parte livros litúrgicos
(um missal e um breviário), uma vestimenta para um sacerdote e uma sobrepeliz
para um capelão, castiçais para o altar, um cálice e uma custódia, a cruz do
altar, a naveta para guardar o incenso e o turíbulo para queimar e espalhar o
seu fumo, um porta-paz, uma caldeira com hissope para aspergir água benta,
galhetas para guardar os santos óleos. Não faltavam também objectos de uso
profano como o tabuleiro de xadrez, ou os essenciais e muito prestigiosos objectos
de toilette, os espelhos e pentes.
Também se incluíam numerosos objectos para levar à mesa, em que não faltavam as
confeiteiras (para doces) e os oveiros (para ovos). Sinais de distinção
que, mais do que fornecerem os equipamentos necessários à vida doméstica e aos
cuidados do corpo e alma, simbolizavam o estatuto régio da noiva e
recordavam ao noivo o dever de o respeitar. Estava portanto a infanta dona
Beatriz suficientemente provida de bens necessários ao seu novo estado. Vejamos
o que aconteceu nos vinte e três anos em que esteve casada com o infante
Fernando, antes de enviuvar em 1470.
Teve, segundo consta, nove
filhos, o que significa que cumpriu o que se esperava de uma nobre de alta estirpe
em termos de reprodução biológica. Se tivermos em conta que pode ter tido
desmanchos, filhos mortos à nascença ou de poucos dias que raramente deixavam
vestígios documentais, provavelmente teríamos muito mais gravidezes. Mesmo os
filhos de reis e rainhas em exercício só são mencionados extensivamente nas
crónicas quando vieram a ser herdeiros ou herdeiras do trono. Quando o marido
morreu, João era o filho mais velho, dado como tendo 10 anos, ou seja, menos
dois do que a irmã. Apesar de não nos ser dito que dona Leonor foi a mais velha,
parece ter sido o caso, ainda que continue por explicar o que aconteceu nos
anos entre 1447 e 1458, isto é, entre a data do casamento e o nascimento de dona
Leonor. Teriam tido filhos entretanto mortos? Ou teria havido um longo
período de infertilidade, seguido por muitos filhos?
Dona Beatriz sobreviveu mais de
trinta e seis anos ao marido, e assumiu por inteiro o comando da família
durante a menoridade dos filhos, em nome dos quais administrava o património da
casa, uma grande fortuna e um enorme poderio territorial. Sogra do rei, sogra
do duque de Bragança, o número dois no ranking
do poder monárquico, tutora de seus filhos rapazes menores, tia da rainha de
Castela, Isabel a Católica. Ao mais
velho estava destinada a sucessão do mestrado da Ordem de Cristo, mas dona Beatriz
assumiu durante breve espaço de tempo a chefia da mesma, na qualidade de tutora
de seu filho. Não é difícil imaginá-la como uma mulher autónoma. A sua
independência, no entanto, sofria de uma desvantagem que a filha dona Leonor
não terá aquando da sua também prolongada viuvez. É que, enquanto mãe de filhos
do sexo masculino, dona Beatriz ficaria dependente da sua generosidade e
debaixo da sua autoridade quando atingissem a maioridade. Aconteceu com Diogo e
mais tarde com o filho Manuel, duque de Beja e depois rei, que lhe pagava uma
generosa tença. Dona Leonor seria uma viúva sem filhos, pelo que gozaria de
maior autonomia.
De resto, fazemos aqui um
parêntese importante para explicar algo de crucial: pela via materna, a rainha dona
Leonor fazia a ponte com os Bragança de forma dupla. Por um lado a sua mãe, dona
Beatriz, era neta de Afonso, conde de Barcelos, 1.º duque de Bragança e filho
ilegítimo do rei João I, e por outro a sua irmã dona Isabel era casada com o
terceiro duque do título, Fernando. E já agora uma segunda ligação dinástica
importante: a irmã de dona Beatriz, Isabel, era mãe Isabel, a Católica, sendo esta última, portanto,
sua sobrinha, e prima direita de dona Leonor. De resto, a avó materna de dona
Leonor morreria em Arévalo, onde se juntara à filha (e mãe de Isabel, a Católica) que sofria de perturbações
do foro mental. Portanto, dona Leonor, por via de sua mãe, não deixava de ser
também uma Bragança, e, demonstrou apego a estes laços de parentesco durante
toda a sua vida. Dona Leonor pertencia a uma família cuja linhagem tinha
pertenças múltiplas relativamente a duas casas que podiam contender o poder
dinástico ao príncipe e depois rei seu marido: os Bragança e os Reis
Católicos». In Isabel Guimarães Sá, De Princesa a Rainha-velha, Leonor de
Lencastre, colecção Rainhas de Portugal, Círculo de Leitores, 2011, ISBN
978-972-424-709-0.
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