Alexandria.
Egipto. 1799
«(…)
Nunca antes vi uma coisa assim, sussurrou Abu, espantado. Que significa?, quis
saber Napoleão. Não sei, general. É muito invulgar, gaguejou Abu. Desembrulhe-o,
Saurent, ordenou Napoleão. Apesar dos protestos de Abu, Saurent insistiu que os
jovens cortassem as faixas de linho e expusessem a múmia. Eram os franceses
quem lhes pagava, portanto acederam. Como L’Étoile sabia, as antigas técnicas de
embalsamento, recorrendo à utilização de óleos e unguentos perfumados, em
conjunto com o ar seco presente na cripta, deveriam ter impedido os tecidos
moles do falecido de se decomporem. Até o cabelo podia estar preservado. Já
vira algumas múmias antes e ficara fascinado com os cadáveres bem-cheirosos. Minutos
depois, o enegrecido tecido fora cortado. De facto, nunca vi nada assim,
murmurou Abu. O cadáver à direita não tinha os braços cruzados sobre o peito,
como era costume. Ao invés, tinha o braço direito estendido e dava a mão a uma
mulher com a qual fora mumificado. A mão esquerda da mulher estava entrelaçada
na do homem. Os amantes tinham um ar natural: os corpos, de tão bem
preservados, pareciam ter sido sepultados havia meses, não séculos.
A
multidão reunida em redor do sarcófago murmurou de espanto, perante aquele
casal ligado até na morte, mas o que afectou L’Étoile não foi a sua visão. Ali,
por fim, estava a fonte do odor que começara a atraí-lo desde que descera a
escada de mão. Esforçou-se por isolar as notas que reconhecia, procurando os
ingredientes que conferiam à mistura aquela promessa de esperança, de longas
noites e sonhos voluptuosos, de atracção e afecto. De uma eterna aliança, plena
de possibilidades. De almas perdidas por fim reunidas. Ao inalar de novo, os
olhos do perfumista encheram-se de lágrimas. Aquele era o tipo de aroma que
sempre imaginara conseguir fazer. Estava a cheirar emoção em estado líquido.
Aquele era o aroma do amor. Era isso que Giles L’Étoile estava a cheirar. O
perfumista entrou em desespero. Que daria àquela fragrância a sua complexidade?
Porque era tão esquiva, tão inapreensível? Porque não conseguia reconhecê-la?
Ao inspirar, memorizara mais de quinhentos ingredientes. Que mais havia na
composição daquele perfume? Se ao menos existisse uma máquina que fosse capaz de
absorver o ar e separar os seus componentes. Muito tempo antes, falara com o
pai acerca de tal maquineta. Jean-Louis zombara dele, como fazia com a maioria
das invenções e fantasias do filho, castigando-o por desperdiçar tempo em ideias
fantasiosas e inviáveis, por se dedicar a romantismos ridículos.
Um
perfume pode evocar sentimentos, pai, argumentara L’Étoile. Imagine a fortuna
que não faríamos se vendêssemos sonhos e não apenas misturas de aromas. Disparate,
admoestara o pai. Somos químicos, não poetas. A nossa função é mascarar o fedor
das ruas, cobrir o aroma da carne e aliviar os sentidos do ataque de cheiros
desagradáveis, repugnantes e infectos. Não, pai. Está enganado. A poesia é
precisamente a essência do nosso trabalho. Apesar da opinião do pai, L’Etoile
tinha a certeza de que uma fragrância tinha muito a oferecer, que possuía um
desígnio mais profundo. Fora por esse motivo que viajara para o Egipto. E
descobrira que estava certo. Os antigos perfumistas haviam sido sacerdotes. O
perfume era parte integrante de rituais sagrados e de costumes religiosos. A
alma ascendia aos céus no fumo do incenso.
O
general aproximou-se mais para inspeccionar as múmias. Ao estender a mão para o
interior do caixão, Abu murmurou um aviso. Napoleão ignorou as palavras do guia
e tirou um pequeno objecto dos dedos da múmia masculina. Extraordinário,
comentou, ao mesmo tempo que extraía uma peça de cerâmica idêntica da mão da
outra múmia. Cada um segura um pote destes. Abriu o primeiro; depois o segundo.
Uns instantes mais tarde, farejou o ar. Em seguida, levou cada um dos pequenos
potes ao nariz, cheirando um e, por fim, o outro. L’Étoile, parecem conter uma substância
perfumada idêntica. Estendeu-lhe um dos potes. Será uma pomada? Reconhece isto?
O recipiente era pequeno o suficiente para lhe caber na mão. Vidrado a branco,
estava decorado com elaborados desenhos em tons de coral e turquesa e
hieróglifos em redor da parte mais bojuda. A linguagem perdida dos antigos que
ninguém conseguia ler. Mas uma linguagem que o perfumista conseguia seguramente
cheirar. L’Étoile tocou na superfície cerosa. Com que então, aquilo que tinha
na mão era a origem do odor que o atraíra até à câmara!» In M. J. Rose, O Livro dos
Perfumes Perdidos, tradução de Eugénia Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2012,
ISBN 978-989-724-039-3.
Cortesia
de CAutor/JDACT