sábado, 8 de agosto de 2015

As Pirâmides de Napoleão. William Dietrich. «Qual, então, seria o papel do homem? O que a racionalidade tinha a ver com romance e sexo, duas das maiores paixões francesas? O que ciência tinha a ver com amor, igualdade com ambição, ou liberdade com conquista?»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Eu tinha um pouco de status graças a meu período como  aprendiz do grande e, infelizmente já falecido, Benjamin Franklin. Ele me ensinou o suficiente sobre electricidade para que eu pudesse entreter uma selecta audiência, por exemplo, ao girar um cilindro para transferir uma carga estática para as mãos das moças mais bonitas e, então, desafiar os homens a tentarem, literalmente, dar um beijo, digamos, chocante. Também era um pouco conhecido por minhas demonstrações de tiro. Além da electricidade, eu exibia a precisão do rifle longo norte-americano: tinha que acertar seis balas numa bandeja de estanho a duzentos passos e, com um pouco de sorte, cortar a pluma do chapéu de um general incrédulo a cinquenta. Embora se limitasse, às vezes, a tentativas frustradas, meu trabalho garantia parte do meu dinheiro com o esforço de firmar contratos entre a França, com sua pressão militar, e minha jovem e neutra nação. Uma tarefa ingrata, devo dizer, já que o hábito revolucionário de abordar e confiscar navios norte-americanos tornava tudo mais difícil. Entre uma reunião e outra, meu maior problema era não ter muitas opções para ocupar meus dias: eu era mais um dos jovens que ficavam à deriva esperando o futuro chegar. Além disso, o dinheiro era pouco para garantir meu sustento de maneira confortável em Paris, com sua inflacção proibitiva.
Justamente por isso, eu tentava a sorte nas cartas. Nossa anfitriã era a misteriosa madame d’Liberté, uma daquelas mulheres de negócios cheias de beleza, ambição, vontade e esperteza que emergiram da anarquia revolucionária. Quem diria que as mulheres poderiam ser tão ambiciosas, inteligentes e sedutoramente convincentes? Ela dava ordens como um sargento veterano e, mesmo assim, entrava na nova moda de vestir vestidos clássicos para exibir seus charmes femininos. Os tecidos eram tão transparentes que os mais observadores podiam encontrar o triângulo negro apontando para seu templo de Vénus. Seus mamilos eram devidamente maquiados num leve tom de vermelho e apontavam por cima de seu sutiã como soldados espiando para fora de uma trincheira. Uma outra cortesã era mais directa e exibia seus seios por inteiro, como um par de melões prontos para a colheita.
Até os homens entravam na onda do visual. Para não serem engolidos pelo deslumbre provocado pelas mulheres, muitos dos exibidos abusavam de modelitos extravagantes com direito a capas que iam até os joelhos, sapatos tão delicados quanto as patas de gatinhos e brincos dourados que reluziam em suas orelhas. Não foi nenhuma surpresa eu me arriscar a retornar a Paris, não é? Quem não amaria uma capital que tivesse três vezes mais produtores de vinho do que padeiros? Sua beleza perde apenas para sua sabedoria, um embriagado jogador e negociante de arte chamado Pierre Cannard disse para a madame assim que ela cortou seu fluxo de whisky. Essa foi sua punição por ter derramado bebida em seu recém-adquirido e inimitável carpete oriental. Ela pagou uma alta quantia a um nobre falido, que estava se desfazendo de todas as riquezas para conseguir dinheiro. Todos os nobres faziam o mesmo.
Elogios não vão limpar meu carpete, monsieur. Cannard não desistiu. E sua sabedoria perde apenas para sua força, sua força para sua teimosia, e sua teimosia para sua crueldade. Sem whisky? Com essa frieza feminina, eu bem que preferiria comprar bebida de um homem! Ela devolveu. … você parece muito com nosso novo herói militar. … quer dizer o jovem general Bonaparte? Um porco da Córsega. Quando a brilhante Germaine de  Stael perguntou a ele sobre qual tipo de mulher ele admirava, Bonaparte respondeu: Aquela que cuida melhor da casa? Os presentes riram. … com certeza!, Cannard gritou. Ele é italiano e sabe bem o lugar de uma mulher! Então, ela tentou novamente, perguntando quem é a mulher mais distinta entre todas as outras. E o bastardo respondeu: aquela que pode dar à luz a mais crianças. Fomos ao delírio. Foi impressionante o modo como revelamos nossos sentimentos em relação às mulheres.
Realmente, qual era o lugar da mulher na sociedade revolucionária? Elas receberam direitos, até mesmo o do divórcio, mas o recém-afamado Napoleão tinha a mesma postura de todos os outros milhões de reaccionários que prefeririam revogar essa decisão. Qual, então, seria o papel do homem? O que a racionalidade tinha a ver com romance e sexo, duas das maiores paixões francesas? O que ciência tinha a ver com amor, igualdade com ambição, ou liberdade com conquista? Todos sentíamos as coisas de um jeito diferente no Ano Seis. Madame d’Liberte havia comprado um apartamento no primeiro andar acima da loja de chapéus. Ela gastou uma bela quantia para mobiliar e abrir o estabelecimento tão rápido que eu ainda podia sentir o cheiro da pasta do papel de parede misturado ao aroma de colónia e fumaça de tabaco». In William Dietrich, As Pirâmides de Napoleão, 2007, Grandes Narrativas, nº 490, Editorial Presença, 2011, ISBN 978-972-234-450-0.
                         
Cortesia EPresença/JDACT