«(…) Nem a economia foi
suficientemente forte para submergir o sentimento de identidade nacional. A
articulação Lisboa-Sevilha comandava a Carreira da Índia, cada vez mais
dependente dos reales de Castela. E
Portugal, perturbado nos seus imensos oceanos pelo corso dos Protestantes e
pela falta de numerário, precisava, não de lutar contra o vizinho, demasiado
poderoso, mas de se apoiar nele. No entanto, em 1580, é Lisboa, pátria comum
dos portugueses e a mãe europeia da Rota do Cabo, que assume a liderança da
resposta à invasão castelhana e, durante sessenta anos, é ela que mantém a
chama principal da resistência. Os documentos e as narrativas da época empregam
correntemente as palavras nação, grei ou pátria. Pátria, minha amada, canta
Luís de Camões. João de Barros põe na boca de Francisco Almeida o significado
da palavra grei. Falava aos soldados, frente à barra de Diu onde os aguardavam as
armadas turca e indianas. Grei é a congregação
dos nossos parentes, amigos, compatriotas a que chamamos república, celebra nosso
nome de geração em geração até ao fim do mundo onde a memória de todas as coisas
acaba.
A palavra nação ganhou novos costumes
e mais ou menos apego. Também os modos e a profundidade da identidade são vividos
de forma diferente pelos grupos sociais, ontem quase como hoje. Portugal esquivou-se
ao abraço de Castela usando o refúgio e o suporte material do oceano e do império
marítimo. A política dominadora dos reis de Castela também contribuiu para
endurecer a resistência e o querer dos portugueses. Francisco Manuel Melo viveu
politicamente os últimos anos da monarquia plural (dual parece-me pouco) e escreveu:
Filipe II e III de Portugal não tinham de rei mais que a vazia dignidade e as alterações
de Évora de 1638-1639 foram como um cometa que, sendo produzido de baixa exalação
da Terra, subiu e se acendeu no céu. Há quem fale na consciência duma
identidade europeia. É pôr o carro à frente dos bois. Camões estendia a Europa até
à Moscóvia, mas a consciência de uma identidade europeia não ia muito além do Ocidente
cristão e das cidades ligadas pelo mar, pelo comércio e pelo movimento
religioso e universitário. António Galvão, na sua História dos Descobrimentos,
ainda incluiu, nas descobertas, as viagens de Damião de Góis pela Europa de Leste.
Os portugueses conheciam bem melhor os portos orientais e atlânticos do que as cidades
da Europa. Fernão Mendes Pinto e Luís de Camões cruzaram os três oceanos mas não
consta que tenham trilhado qualquer cidade europeia. O que os unia nas plagas orientais
era a língua, a crença, as armas e a identidade portuguesa.
Vivemos os últimos séculos de costas
voltadas e tornamos a empunhar as armas. Mas Castela é quase da nossa idade e a
nossa irmã mais próxima. Partilhamos os rios, o Minho, o Douro, o Tejo, o
Guadiana e outros que atravessamos a pé enxuto. A Cordilheira Central da
Meseta vem olhar o Mar Oceano do alto da serra de Sintra. A bem dizer, conseguimos
entender-nos falando cada qual a sua língua. E Cervantes, Lope Vega, Quevedo ou,
mais próximo, Federico Garcia Lorca, são quase nossos. E encontramo-nos em todas
as partes do Mundo. Depois de duas guerras mundiais, da guerra-fria e agora de outras
guerras quentes que demoram a apagar-se, Portugal e Espanha instauraram regimes
democráticos, abriram as fronteiras, restabeleceram fortíssimos laços económicos
e humanos e integraram-se no espaço económico e político europeu. Não podemos viver
de costas voltadas. A fantástica e tremenda revolução tecnológica, operada na esfera
digital, abre aos nossos olhos e ouvidos o mundo todo, entra no espaço cósmico.
Liberta e prende, informa e formata, infantiliza e diverte, divide e aproxima. E
traz a angústia, a nossas casas, ao jantar. Com os olhos presos, cavalgamos as imagens,
ouvimos as vozes do Mundo. As contradições e o ruído atingem por vezes proporções
insuportáveis mas, no rasto da vida e da morte, também somos cada vez mais
cidadãos do Mundo. As nações não vieram todas de França no bico das cegonhas nem
estão para acabar tão cedo. Como no passado, as nações grandes comem as pequenas.
Voltam as cidades-Estado. Mas as nações continuam vivas ou em nascimento e ainda
são necessárias, livres, para uma mais sã convivência, para defender os
interesses e a cultura dos povos, para fortalecer a identidade tumultuosa e contraditória
de Cidadãos do Mundo».
Quem
vos venceu
No final da batalha de Alcântara,
quando a armada do marquês de Santa Cruz rendia no Tejo sem combate a frota portuguesa
e o exército castelhano-europeu do duque de Alba saqueava o termo de Lisboa, um
frade de Nossa Senhora da Graça, o Toscano,
clamava, na Sé, do alto do púlpito: quereis
saber quem desbaratou estes [portugueses] de quem tantas façanhas estão escritas? Venceu-os meia folha de papel
com um sinal ao pé. Vedes aqui quem os venceu, vedes aqui quem os derribou, vedes
aqui quem lhes escureceu todas suas vitórias, vedes aqui quem lhas botou por terra,
vedes aqui a força de meia folha de papel em branco com um sinal ao pé...» In
António Borges Coelho, Os Filipes, Editorial Caminho, 2015, ISBN
978-972-212-740-0.
Cortesia de Caminho/JDACT