terça-feira, 18 de agosto de 2015

Os Filipes. António Borges Coelho. «No final da batalha de Alcântara, quando a armada do marquês de Santa Cruz rendia no Tejo sem combate a frota portuguesa e o exército castelhano-europeu do duque de Alba saqueava o termo de Lisboa…»

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«(…) Nem a economia foi suficientemente forte para submergir o sentimento de identidade nacional. A articulação Lisboa-Sevilha comandava a Carreira da Índia, cada vez mais dependente dos reales de Castela. E Portugal, perturbado nos seus imensos oceanos pelo corso dos Protestantes e pela falta de numerário, precisava, não de lutar contra o vizinho, demasiado poderoso, mas de se apoiar nele. No entanto, em 1580, é Lisboa, pátria comum dos portugueses e a mãe europeia da Rota do Cabo, que assume a liderança da resposta à invasão castelhana e, durante sessenta anos, é ela que mantém a chama principal da resistência. Os documentos e as narrativas da época empregam correntemente as palavras nação, grei ou pátria. Pátria, minha amada, canta Luís de Camões. João de Barros põe na boca de Francisco Almeida o significado da palavra grei. Falava aos soldados, frente à barra de Diu onde os aguardavam as armadas turca e indianas. Grei é a congregação dos nossos parentes, amigos, compatriotas a que chamamos república, celebra nosso nome de geração em geração até ao fim do mundo onde a memória de todas as coisas acaba.
A palavra nação ganhou novos costumes e mais ou menos apego. Também os modos e a profundidade da identidade são vividos de forma diferente pelos grupos sociais, ontem quase como hoje. Portugal esquivou-se ao abraço de Castela usando o refúgio e o suporte material do oceano e do império marítimo. A política dominadora dos reis de Castela também contribuiu para endurecer a resistência e o querer dos portugueses. Francisco Manuel Melo viveu politicamente os últimos anos da monarquia plural (dual parece-me pouco) e escreveu: Filipe II e III de Portugal não tinham de rei mais que a vazia dignidade e as alterações de Évora de 1638-1639 foram como um cometa que, sendo produzido de baixa exalação da Terra, subiu e se acendeu no céu. Há quem fale na consciência duma identidade europeia. É pôr o carro à frente dos bois. Camões estendia a Europa até à Moscóvia, mas a consciência de uma identidade europeia não ia muito além do Ocidente cristão e das cidades ligadas pelo mar, pelo comércio e pelo movimento religioso e universitário. António Galvão, na sua História dos Descobrimentos, ainda incluiu, nas descobertas, as viagens de Damião de Góis pela Europa de Leste. Os portugueses conheciam bem melhor os portos orientais e atlânticos do que as cidades da Europa. Fernão Mendes Pinto e Luís de Camões cruzaram os três oceanos mas não consta que tenham trilhado qualquer cidade europeia. O que os unia nas plagas orientais era a língua, a crença, as armas e a identidade portuguesa.
Vivemos os últimos séculos de costas voltadas e tornamos a empunhar as armas. Mas Castela é quase da nossa idade e a nossa irmã mais próxima. Partilhamos os rios, o Minho, o Douro, o Tejo, o Guadiana e outros que atravessamos a pé enxuto. A Cordilheira Central da Meseta vem olhar o Mar Oceano do alto da serra de Sintra. A bem dizer, conseguimos entender-nos falando cada qual a sua língua. E Cervantes, Lope Vega, Quevedo ou, mais próximo, Federico Garcia Lorca, são quase nossos. E encontramo-nos em todas as partes do Mundo. Depois de duas guerras mundiais, da guerra-fria e agora de outras guerras quentes que demoram a apagar-se, Portugal e Espanha instauraram regimes democráticos, abriram as fronteiras, restabeleceram fortíssimos laços económicos e humanos e integraram-se no espaço económico e político europeu. Não podemos viver de costas voltadas. A fantástica e tremenda revolução tecnológica, operada na esfera digital, abre aos nossos olhos e ouvidos o mundo todo, entra no espaço cósmico. Liberta e prende, informa e formata, infantiliza e diverte, divide e aproxima. E traz a angústia, a nossas casas, ao jantar. Com os olhos presos, cavalgamos as imagens, ouvimos as vozes do Mundo. As contradições e o ruído atingem por vezes proporções insuportáveis mas, no rasto da vida e da morte, também somos cada vez mais cidadãos do Mundo. As nações não vieram todas de França no bico das cegonhas nem estão para acabar tão cedo. Como no passado, as nações grandes comem as pequenas. Voltam as cidades-Estado. Mas as nações continuam vivas ou em nascimento e ainda são necessárias, livres, para uma mais sã convivência, para defender os interesses e a cultura dos povos, para fortalecer a identidade tumultuosa e contraditória de Cidadãos do Mundo».

Quem vos venceu
No final da batalha de Alcântara, quando a armada do marquês de Santa Cruz rendia no Tejo sem combate a frota portuguesa e o exército castelhano-europeu do duque de Alba saqueava o termo de Lisboa, um frade de Nossa Senhora da Graça, o Toscano, clamava, na Sé, do alto do púlpito: quereis saber quem desbaratou estes [portugueses] de quem tantas façanhas estão escritas? Venceu-os meia folha de papel com um sinal ao pé. Vedes aqui quem os venceu, vedes aqui quem os derribou, vedes aqui quem lhes escureceu todas suas vitórias, vedes aqui quem lhas botou por terra, vedes aqui a força de meia folha de papel em branco com um sinal ao pé...» In António Borges Coelho, Os Filipes, Editorial Caminho, 2015, ISBN 978-972-212-740-0.

Cortesia de Caminho/JDACT