terça-feira, 25 de agosto de 2015

Os Meninos Judeus Desterrados. Orlando Piedade. «A minha própria respiração passou a ser um vendaval ruidoso capaz de me denunciar. Tornou-se insuportável e sentia que aquele local era perigoso»

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De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493
«(…) A história de uma família que se confunde com a história de um povo. Estarão vocês, Javier e Raquel, a escrever os últimos capítulos da história da vossa família? Sim, da vossa família, porque a do vosso povo continuará! Javier, tal como eu, recusa a ideia de este ser o último capítulo. Tens que ser forte para sobreviveres contra todas as probabilidades e dar continuidade a tudo, para que a luta da nossa família não tenha sido em vão. A sobrevivência não se esgota no pulsar do teu coração; passa por enraizar e dar continuidade a tudo; passa por acreditar; por seres forte e vencer. Eu, tal como os primeiros, sou uma vencedora porque alimentei e segui a minha fé. Não tenho a lucidez suficiente para procurar as melhores palavras. Vais receber algo deturpado mas cabe-te a ti, um dia, interpretar, descobrir o resto e dar continuidade. As palavras da nossa avó compõem o trecho cuja melodia escuto todos os dias, não pela minha deliberação, mas sim pela rudeza da tatuagem que ficou gravada na minha mente. Isso faz com que tudo pareça ter sido contado ontem...»
Abraça Raquel, Javier. Tudo aquilo que estivemos a ver ainda hoje, Javier, e que rapidamente está a transformar-se em cinza, é o que a nossa avó relata na história. É a mesma gruta que a nossa bisavó percorreu que nós também percorremos. Já, não resta nada para além daquilo que estamos a ver. O que é mais doloroso são os corpos dos nossos pais e da nossa avó carbonizados aqui bem perto e diante dos nossos olhos. O fumo desaparece no ar, o cheiro é acre e desagradável, mas nada podemos fazer. Não nos podemos denunciar para não seguires o mesmo caminho. É por ti, porque eu já iniciei a marcha; já entrei no caminho sem retorno; desde que não me deixes sozinha sentir-me-ei bem, mas tu, por favor, não te denuncies. Restamos nós, mas eu pouco mais estou a fazer do que tentar, sem sucesso, esticar o tempo. Neste momento sou o espólio de várias bibliotecas que ainda ardem. Espero que tenhas aproveitado tudo que esteve ao teu alcance e... Tenho medo. Abraça-me forte e canta a mesma canção que eu cantava para ti todas as noites. Sei que me abraças, mas não sinto o aperto dos teus braços. No entanto, vejo a estrela da canção e sinto-me levitar... Estás entregue à tua sorte, mano.
Num remoinho de acontecimentos vi a estrutura daquilo que foi a minha casa desabar e os destroços a caírem na nossa direcção. Abandonei o corpo da minha irmã numa fuga aparatosa; dei uma valente topada, caí e rebolei, mas o instinto de sobrevivência sobrepôs-se às dores. Estonteado agachei-me debaixo de uma oliveira e guarneci as minhas costas. Permaneci aí com um olhar vazio em direcção à fúria das chamas crepitantes laranjas e azuis, desenrolando-se em direcção ao céu, e os meus olhos acompanhavam a sua dança como se procurasse a neshama dos meus. Permaneci aí durante horas, a reconstituir o último instante da minha família, a minha avó a dar ordens de retirada e o meu pai a precipitar-se para a porta, O meu vazio ficou assim preenchido, até que tudo o que restava da minha casa não era mais do que um frígido silêncio. A minha própria respiração passou a ser um vendaval ruidoso capaz de me denunciar. Tornou-se insuportável e sentia que aquele local era perigoso». In Orlando Piedade, Os Meninos Judeus Desterrados, De Portugal para S. Tomé e Príncipe por ordem d’el-rei João II em 1493, Edições Colibri, 2014, ISBN 978-989-689-450-4.

Cortesia de Colibri/JDACT