Resumo
«É um lugar-comum dizer-se que
determinada orientação sexual não é uma escolha, porque, se fosse, ninguém
escolheria o caminho mais difícil. Foi esse caminho mais difícil que Teófilo
teve de percorrer, desde a incompatibilidade com os pais aos desencontros dentro
de si próprio, chegando mesmo a acreditar que alguém lhe tinha trocado a
alma... Cheiravas a feno e não sabias que o coração é um barco no tempo. Quando
as aves do Verão demandarem o Sul virás devagar, abrirás a porta verde-escura e
esperarás em vão pelo frémito do meu corpo. Não voltarei a passar o renque das
azáleas, o muro onde o sol nasce, a chuva, para morrer nos teus braços. Aborda,
desta vez, um tema diferente, o tema da homossexualidade masculina, num romance
que, mantendo embora o tom poético que sempre tem caracterizado as criações da
autora, se arrisca por caminhos até aqui pouco explorados na ficção portuguesa.
Um romance que confirma Rosa Lobato de Faria como uma das vozes mais originais
do nosso mundo literário».
«Finalmente
o prazer. Farrapos de fantasias eróticas de toda uma vida, numa espiral onde
rodopiavam emoções, sensações, esquecimento próprio, loucura, aceitação do
animal em mim, do grito, da fome, da liberdade de ser e saber que se é. Apesar.
Mau grado. Não obstante. Que se lixe. Finalmente o prazer. Tantas vezes
sonhado, imaginado, desejado, pressentido. Puro e irracional. Irresponsável. A
fúria da descoberta e depois a paz. Essa paz desconhecida, completa,
apaziguadora. Pela primeira vez na vida, a plenitude. Dormi sobre isto e
acordei feliz. Fixo a cortina de renda, talvez fora de moda mas tão próxima do
meu imaginário. A luz de Lisboa, o Tejo, o céu sem nuvens dão-lhe reflexos
azuis. Nunca estive neste quarto, nesta cama, mas conheço intimamente esta
cortina. Sim, é a cortina do meu quarto em casa da minha avó alentejana.
As
crianças têm de se alevantar quando o sol nasce, mandou dizer a avozinha, toca
a saltar da cama que há muito mundo lá fora, os pintainhos estão a sair dos
ovos, a vaca pariu um bezerrinho, está lá em baixo uma cesta de figos
fresquinhos tapados com folhas de figueira e o seu pinguinho de mel, que os
trouxe agora mesmo o tio Zé Ganhão, toca a alevantar que o pão está saídozinho
do forno e a manteiga, na sua bacia de água com um bocadichito de sal, nem pode
esperar para se derreter naquelas fatias, e o queijo e a marmelada, e os
biscoitos de erva-doce e os beijos do Hugo, e as mãos do Hugo, e as palavras
nunca ouvidas, nunca ditas. Toca a descer, que a avozinha não quer comer sem
companhia na mesa grande da copa, já sabe como ela é, alevanta-se com as
galinhas e quando são sete horas já está varadinha de fome. E a cortina a
estremecer nas mãos da brisa eu, o Hugo
e a
desenhar as rosas da renda na parede.
De
manhã, o feno. A silhueta da carroça contra o horizonte, a azáfama dos
pássaros. Eram as férias, tão diferentes do 6º andar em Lisboa, dos móveis
soturnos da família do meu pai, da austeridade, da prisão. Isto não pode,
aquilo não pode. E aquilo? Não, também não pode. No Alentejo a luz imensa, os
cheiros diferentes, alfazema, carqueja, alecrim, hortelã, coentros e, logo ao
acordar, a cortina de renda beija-me que afastada com a ponta do dedo indicador
desvenda o olival com as suas folhinhas prateadas, os seus olhinhos pretos no
tempo da apanha e mais longe o trigo, como um mar de ondas mansas, onde era bom
perder-se, cuidado com os lacraus. O Hugo disse. Croissants e café à esquina da rua. Têm uma compota deliciosa de
maçã. Vá lá. Um banho e enfrentar o mundo. E de súbito, no espelho, o esgar
horrorizado da mãe. A reprovação do pai. Da Raquel. Do director do colégio. Dos
alunos. Dos pais dos alunos. Do senhor Alberto do café. Dos fregueses
habituais. Da rua inteira a ler-me o pecado na testa cuidado com os lacraus a
testa de um rosto contente. Dar aulas de francês tem destas coisas. Como é que
se diz épanoui em português?
Descontraído, distendido? Desabrochado como as rosas de Malherbe? Parece que épanoui é mais distendido que
distendido, mais descontraído que descontraído. Seja. A felicidade, em suma.
Quanto
lixo metem na cabeça das crianças. Quanto preconceito idiota, quanta pressão,
quanta norma. Normas, para que todos sejamos normais. Mas eu, com pretensões na
área da escrita, nunca serei normal. Aulas de francês, muito bem. Fino, até.
Mas escrever? Veja lá se arranja um hobby
mais útil ou mais sociável, que não seja preciso esconder como se fosse uma
doença. Sinto o doce sabor da vingança ao transgredir as normas. Não foi por
isso que o fiz, nem pensei em tal, só na turva premência do desejo, nos olhos,
nas mãos do Hugo. O sangue espesso, a boca seca. Mas agora reconheço que a
vingança tem o gosto bom da compota de maçã, partilhada à vista de todos, numa
manhã de sol. Só que, aos poucos, a norma que trago cosida à consciência com
uma linha indestrutível fala mais alto. Hugo, isto não pode voltar a acontecer.
Mas porquê, caramba. Porquê? Sabes perfeitamente que a minha família, o
noivado, o colégio... E tu? Não pensas existir como pessoa, tu? Dá-me tempo. Quanto
tempo? Tens vinte e seis anos. Eu sei. E então? Preparar as coisas, falar com
os meus pais, romper o noivado... Ah. Romper a mer… do noivado.
Não pretendo ter amantes depois do casamento. Nem antes, pelos
vistos. Tem que ser um segredo nosso, Hugo. Não me entregues. Achas-me capaz de
te atraiçoar? Não, nem por sombras. Até parece. Por isso agora..., meu
querido..., vamos ficar assim. Tu é que sabes, Teófilo. Tu é que sabes. Teófilo
Deus Ferreira Mendonça, poder-se-ia dizer Pleonasmo Ferreira Mendonça. João
Teófilo de Deus Ferreira era o meu avô alentejano, pai da minha mãe, engenheiro
agrónomo, agricultor e proprietário, homem bonacheirão e generoso, dizem-me,
que não o conheci. Morreu no dia em que fui concebido e a minha mãe, se bem a
conheço, deve até hoje arrepelar-se de remorsos por estar a fornicar com o meu
pai à hora em que o meu avô se despedia deste mundo. Como se a morte não fosse
um apelo à vida e a vida a lógica substituta da morte». In Rosa Lobato Faria, A Alma Trocada,
Edições ASA, Autores Contemporâneos de Língua Portuguesa, Porto, 2007, ISBN 978-972-415-283-7.
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