Recontro em Mofatra
«(…) Acaso duvidais da promessa do anafado Pais?, indagou o
primeiro. Nem os da minha casa eu afianço..., quanto mais subornos do perro
abade - respondeu desabridamente o desdentado. Não vos amofineis. Dar-lhe-emos
o que pediu, nem que seja o crânio de um vilão ébrio, sossegou-o o homem cheio
de cicatrizes. Vamos é acabar com a barrica desta mistela que tendes na caneca,
convidou. Enchei-me a caneca, barregã, vociferou outro, à passagem de Gilda. Os
clientes habituais da estalagem já conheciam o estratagema da rapariga para
controlar situações em que o excesso de bebida toldava o discernimento dos
comensais. Se não assumissem que o vinho havia acabado, a rapariga recorreria a
uma moca de grande dimensão, fatal se dirigida ao crânio mais duro dos mortais.
Então, essa zurrapa vem ou não?, insistia o torpe, limpando um fio de sangue
que lhe escorria da testa. Gilda aproximou-se do grupo e dirigiu-se ao homem.
Já tendes o pouco que sobeja, informou. Por hoje, ficai com o que ainda vos
dança na caneca. Esgotámos o vinho das barricas, desculpou-se a rapariga. Quereis
mais pão?
Enquanto tentava serenar as exigências do grupo, Gilda
reparou que o lugar no estrado estava agora ocupado por uma personagem que não
identificou. Inclinou-se para ver melhor mas, de súbito, uma valente palmada no
rabo fê-la cair sobre a mesa e entornar uma das canecas num um dos homens. Este
disse de imediato: porca serviçal! O pouco que nos dás derrama-lo sobre mim?! Gilda
não deu grande importância à observação, habituada que estava a desmandos semelhantes
e frequentes. Contudo, assustou-se, ao ver crescer o homem para si, em atitude
ameaçadora. Ainda tentou recuar até, ao local onde guardava a famigerada moca,
mas não pôde avançar. O homem agarrou-a com uma mão e levantou a outra bem alto,
com intenção de lhe bater. Em vão. A personagem que, antes, ocupava o estrado,
estava diante do outro, desafiando-lhe o intento.
Era
Bernardo, eivado de uma vontade fulminante de justiçar a afronta. Um instante
de hesitação e o hirsuto caía no chão, atingido por uma manápula em plena
glote. Gilda esquivou-se e correu a buscar a moca. Não contou, todavia, com um
dos companheiros do desgraçado que, com um murro certeiro, a estirou no balcão.
Os outros não tardaram a reagir. O homem coberto de cicatrizes pulou para a mesa
mas, nesse preciso momento, sentiu um forte soco entre as ancas e caiu, contorcendo-se
com dores. Outro, pequeno e esquivo, conseguiu agarrar a luva do opositor.
Porém, não mais do que isso. Mal o fez, um punho férreo esborrachou-lhe o nariz,
torcido em jorros de sangue. Os dois restantes já tinham os punhais em riste, frente
ao misterioso agressor que, encostado a uma parede, sulcava com o olhar o local
que o rodeava. Num ápice, desapareceu da vista dos dois homens. Embasbacados, gelaram
de dúvida. No instante seguinte, o esquivo oponente estava nas suas costas, martelando-lhes
os pescoços com dois valentes muros. Mais dois recuperavam, agarrando a pesada
mesa que empurraram na direcção de Bernardo, entalando-o. Entretanto, Fernando entrou
na liça, prostrando um dos agressores com uma pancada certeira no crânio.
Mas a investida ficou por ali. Lento
de movimentos, não conseguiu fugir de uma cotovelada em cheio na cara, que o derrubou
de imediato. Do outro lado da mesa, Bernardo estava entalado e mirava pelo
canto do olho uma luminária de barro facilmente alcançável. Encolheu os ombros e
levantou os braços em sinal de aparente rendição. Um dos homens largou a mesa. Subitamente,
a luminária voou na direcção da sua cara. Pouco depois, o homem cambaleava,
levava a mão aos olhos e gritava de dor. Bernardo empurrou a mesa e, como se de
um aríete se tratasse, arrastou o outro contra o balaústre do estrado. O homem arregalou
os olhos e, com um grito lancinante, desfaleceu com as pernas partidas. Já um punhal
voava na direcção de Bernardo que, num esforço sobre-humano, saltou o corrimão e
caiu em cima de uma mesa. Na sala, apenas rugiam imprecações e estremeciam feridos.
Os aldeãos haviam desaparecido». In Carlos Cordeiro, O Livro de
Cale, O Monge Negro, 1060-1089, Publicações Europa-América 2010, ISBN 978-972-1-06140-8.
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