1805
- 1806
«(…) Estava escrita num inglês
impecável, adquirido pelo barão em dez anos de estabelecimento de relações comerciais
nas Índias Orientais. Lidara com outros cônsules, a maioria deles britânicos, e
estabelecera relações de amizade e cooperação que o tinham ajudado a estender o
seu império dos móveis. Daniel Turner, a quem dirigia aquela missiva cuidada, não
era um desses homens. Daniel Turner não tinha qualquer explicação elaborada para
o facto de ter adquirido, havia quatro anos, uma adega em Vila Nova de Gaia, à semelhança
de muitos dos seus compatriotas ingleses. Sabia que o vinho do Porto era mundialmente
apreciado, correndo os continentes por via marítima. A Europa, a América do Norte
e do Sul, a África e a Ásia inclusive adquiriam aquele vinho licoroso como se de
barras de ouro se tratasse. Havia relatórios sobre navios com vinho do Porto despachados
para a Nova Zelândia, um ponto distante e exuberante no Hemisfério Sul. Quanto
a ter-se decidido a arregaçar as mangas e a apanhar um navio para Lisboa a fim de
administrar pessoalmente o movimento dessa adega, ainda menos explicações
encontrava. Fora uma espécie de chamamento, esse do investimento no negócio do vinho.
O intelecto de Daniel funcionava sobretudo à base de números, e cedo compreendeu
que tinha jeito para multiplicar fundos.
O pai deixara-o administrar os seus
negócios desde jovem, aplicando pequenas parcelas de dinheiro em sociedades locais.
Devido ao entusiasmo de Daniel pelo dinheiro a circular, o pai deu por si dono de
parte do jornal local, de uma pequena empresa de embarcações de pesca na
Cornualha e co-proprietário de uma tipografia em Southampton. As edições bem
orientadas por um Daniel de vinte anos e empreendedor, tinham voado da prateleira
da pequena livraria que, dois anos depois, adquirira. Colocava os volumes da sua
tipografia na montra, a reluzir atrás do vidro fosco, e não se espantava por serem
os mais vendidos. Agregava-os a outras publicações, a preços especiais, e ia vendo-os
a escoar.
Em
1801, ouvira falar do negócio do vinho
do Porto. Chegavam enormes carregamentos do mesmo à Inglaterra desde que, quase
cem anos antes, as duas nações tinham tomado disposições nesse sentido em Methuen.
Portugal absorvia os panos ingleses e, em troca, Inglaterra moderava as taxas
sobre os vinhos lusos que chegavam aos seus portos. Rapidamente se tornara um vinho
de elite, elevado ao estatuto de licor, infiltrara-se nos círculos intelectuais
de uma Inglaterra fulgurante, acendera discussões filosóficas e humedecera os
lábios à fanfarronice da nobreza. Provinha de um pequeno trecho geográfico que seria
facilmente tomado pelos visionários. Daí e para o mundo, garantiria
estabilidade financeira a quem estivesse disposto a sujar as mãos desde o início.
Daniel tomara a decisão com o olhar preso ao conteúdo amadurecido de um copo de
porto. O travo a madeira de carvalho e a nozes inspirava-o, instigava-lhe a
mente a rebuscar novos nichos de negócio, e a sua última ideia reluzia à sua frente,
num café inglês, em rons de âmbar. O fumo dos charutos envolvia-o e, sentindo-se
isolado, como, aliás, sempre se sentiria em relação a toda a classe de
cavalheiros ingleses de sangue azul à qual não pertencia, decidiu ir ao encontro
das raízes desse vinho e da terra que dava apoio àqueles pés de vinha». In
Célia Correia Loureiro, A Filha do Barão, 1809, Marcador Editora, 2013/2014,
ISBN 978-989-754-039-4.
Cortesia
de MarcadorE/JDACT