«(…) A Santa Sé quer a todo o
preço impedir esta publicação. Chartier verifica com satisfação que Villon
deixa imediatamente de se servir das travessas. Do clarão vacilante das velas
emana agora uma impressão de conivência entre os dois homens. Não é a penumbra do
calabouço que convida a essa intimidade, mas o laço invisível de uma paixão
partilhada, uma paixão viva e intensa que vem lembrar ao bispo por que motivo
se digna ele a jantar com um condenado à morte: a paixão por tudo o que respeita
aos livros. François apruma as costas, limpa as mãos e pega na obra que Chartier
poisou em cima da toalha. Começa por lhe acariciar a encadernação, à maneira
dos cegos, tacteando a textura, alisando as tranchefilas, seguindo com o dedo
os pregueados do couro. Quando a abre, os olhos iluminam-se-lhe. Folheia-a com
precaução. O glutão de há pouco desapareceu como que por magia, cedendo
bruscamente lugar a um conviva seguro na sua postura e com gestos de entendido.
Esquecido da presença da sua
eminente visita, François examina com atenção a qualidade do papel, a da tinta.
Um texto latino, entrecortado aqui e ali de termos gregos, abarrota as páginas.
As linhas são densas e cerradas. Os espaços exíguos entre os parágrafos mal chegam
a separá-los. Sobre a vaga contínua das palavras esparze-se uma pontuação
tímida. O trabalho é deselegante, como que atabalhoadamente composto. Não se
trata de um manuscrito de copista de traço indolente, de caligrafia redonda,
mas de um amontoado de caracteres desordenados, alinhados sem jeito,
brutalmente inscritos na folha. François já viu uns quantos volumes do género
nas bibliotecas das faculdades. O aspecto desses livros fabricados à máquina, causa-lhe
uma espécie de repugnância.
O bispo tossica para arrancar
Villon à sua contemplação. É uma obra que se vende à socapa. Vem da oficina de
um certo Johann Fust, impressor em Mogúncia. François torna a poisar o livro em
cima da mesa e deita a mão a uma maçã verde. Ouve a custo Chartier, cuja voz
monocórdica se sobrepõe dificilmente ao estalido que os seus maxilares produzem
ao triturar a polpa. O suco ácido irrita-lhe os abcessos que a dieta draconiana
da prisão lhe causou. Cospe tudo o que tem na boca para o chão com um trejeito
enojado. Chartier constata contristado o regresso do urso hirsuto. Villon
parece agora escutá-lo com um só ouvido. O bispo retoma a sua exposição
contrariado, cada vez menos persuadido do préstimo da sua visita. Mas não pode
voltar da sua visita de mãos a abanar. O rei insiste em ter Villon por
candidato ideal, apesar do entendimento adverso dos seus conselheiros. A
maneira como Johann Fust gere os seus negócios intriga no mais alto grau a corte.
Aquele impressor alemão abriu várias oficinas em pequenas povoações isoladas,
na Baviera, na Flandres e no Norte de Itália. Aparenta não tirar qualquer ganho
mercantil destas sucursais. E contudo, no mapa, a sua distribuição evoca um
movimento militar. Que objectivo tem? De acordo com as informações obtidas,
Fust perde dinheiro todos os dias. Em Mogúncia, publica bíblias e obras
piedosas por encomenda, mas noutros lugares as suas prensas artesanais imprimem
volumes de um género completamente diferente: antigos escritos gregos ou
romanos, recentes tratados de medicina e de astronomia que só ele parece capaz
de obter, sem que seja possível descobrir-lhes a proveniência.
Quem
o abastece? Na cópia de A República,
que Villon tinha há pouco nas mãos, Platão expõe de que modo deve a cidade ser
governada. É um texto que confirma Luís XI nos seus desígnios políticos.
Fortalece igualmente o estatuto da Igreja de França, desejosa de se
desembaraçar do jugo apostólico. Daí a oposição de Roma. Porque se
obstina Fust em publicar obras que tais, expondo-se ao risco de sofrer as
fulminações da Inquisição (maldita)? François inclina-se para o lado do
volume com um ar perplexo, ponderando que o seu peso é suficiente para abater o
bispo. Aponta ostensivamente com o dedo as paredes húmidas da cela e, em
seguida, designa o festim com um gesto arredondado da mão. Será possível uma
carestia tão grande de bufos? Não se trata de denunciar o impressor, mestre
Villon, mas de estabelecer cumplicidade com ele. François sorri, tranquilizado.
Seria bastante ridículo recrutá-lo como denunciante. Preso e torturado várias
vezes, nunca traiu um só dos seus cúmplices. A delação não faz parte do
repertório dos seus numerosos vícios e pechas. Chartier abstém-se de lhe fazer semelhante
injúria, servindo-lhe um magnânimo copo cheio de aguardente». In
Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras
Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.
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