«(…) O rei de França procura
enfraquecer o poder do Vaticano, a fim de consolidar o seu próprio poder. Ora,
uma indústria nascente vem de súbito minar a supremacia papal. Ao contrário dos
monges copistas, a imprensa não se encontra sujeita à Igreja. Habilmente utilizada,
poderia conferir muita força aos que se assegurassem do seu controlo. É, por
conseguinte, lamentável que ainda não existam prensas de impressão em França. O
bispo fita Villon directamente nos olhos, procurando o obter toda a sua
atenção. Fala num quase sussurro. Os bandidos e os livreiros servem-se dos
mesmos canais clandestinos para fazerem circular as suas mercadorias iludindo
os censores e os guardas. Por isso, é a um salteador, Colin de Cayeux de seu
nome, do bando cuja insígnia é uma concha, e chamado por isso de coquillards, que será confiada a
missão de seguir as acções e os gestos de Johann Fust. O primeiro espia-o desde
há meses. Fust abriu várias oficinas nas regiões vizinhas do reino, mas
continua sem as abrir em França. Colin de Cayeux recomendou o seu bom amigo Villon,
também coquillard, como o homem
mais capaz para convencer o impressor alemão a vir instalar-se em Paris. Precisais,
em suma, de um malfeitor, monsenhor.
Sim, mas que seja também um fino
letrado. François aceita o cumprimento com um movimento da cabeça. Devolve o
exemplar da ResPublica a Chartier,
abstendo-se de revelar ao prelado que conhece muito bem esse texto e que, não
menos do que Luís XI, compreende o seu alcance político. Platão descreve nele
uma nação regida por um monarca cuja autoridade excede a dos sacerdotes e a dos
senhores, em nome do bem comum. Villon
reflecte um momento. As ambições de um jovem rei preocupado com a consolidação
do seu regime são fáceis de compreender. Mas que desígnio visa, afinal, o tal
Fust, um simples mercador de livros? O bispo começa a tamborilar o tampo da
mesa com a ponta dos dedos, deixando assomar um esgar de exasperação. Os pavios
das velas emergem à tona da cera fundente. Os seus reflexos ténues dançam no
cristal da garrafa. François levanta o rosto, arvorando um mordiscar de lábios
cuja tola simplicidade demasiado vincada raia a insolência.
Dizei
a Luís, o Prudente, que o seu bom
súbdito Villon, ainda que muito ocupado por outros assuntos, ignorará todos os
outros negócios aprazados com o propósito somente de lhe agradar. O tamborilar
dos dedos cessa no mesmo instante. O esgar impaciente de Chartier é substituído
por um sorriso sacerdotal. Fust e o seu genro estarão presentes na grande feira
de Lyon. Terão lá a sua banca. O teu amigo Colin não os perderá de vista. Assim
que tiver transitado a tua comutação de pena, irás ter com ele. A minha diocese
fornecer-te-á meios que te servirão de engodo para atrair esse impressor. Mais
um pouco de vinho? François estende o copo. O líquido que nele se derrama
trauteia um estribilho agradável. O prelado e o recluso brindam com um ar de
entendidos. François, já muito embriagado, abstém-se de saltar da cadeira para
dançar a bourrée à volta da
mesa. Baixa os olhos, fingindo uma humildade reconhecida, sem ver mais do que a
toalha bordada, as iguarias que arrefecem no fundo das travessas, o peito do
bispo que, a cada inspiração, dilata a cruz escarlate. Sabe a que ponto
Guillaume Chartier o detesta. E o inveja. Porque, dos dois, naquela enxovia, é
de facto François quem é verdadeiramente livre, sem amarras, e sempre assim foi».
In
Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras
Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.
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