quarta-feira, 23 de setembro de 2015

A tia Júlia e o Escrevedor. Mario Vargas Llosa. «Depois, uma manhã, queimou o caixote com as fichas num descampado, ele e eu dançámos uma dança apache em volta das chamas filológicas…, que odiava a literatura…»

jdact

«(…) Procurei envenenar as suas ilusões. Disse-lhe que acabava de comprovar que os Bolivianos eram muito antipáticos e que Pedro Camacho iria dar-se pessimamente com todas as pessoas da Rádio Central, A sua pronúncia cairia como pedradas nos ouvintes e, devido à sua ignorância em relação ao Peru, meteria o pé na argola a cada instante. Mas ele sorria, intocado pelas minhas profecias derrotistas. Embora nunca tivesse aqui estado, Pedro Camacho falara-lhe da alma limenha como um Bajopontino e a sua pronúncia era soberba, sem esses nem erres acentuados, categoria de veludo. O pobre forasteiro vai ser esmagado entre Luciano Pando e os outros actores, sonhou Javier. Ou será violado pela bela Josefina Sánchez.
Estávamos no sótão e conversávamos enquanto eu passava à máquina, alterando adjectivos e advérbios, notícias de El Comercio e de La Prensa para o Pan-Anericano do meio-dia. Javier era o meu melhor amigo e víamo-nos diariamente, ainda que só por momentos, para constatar que existíamos. Era um ser de entusiasmos cambiantes e contraditórios, mas sempre sinceros. Fora a estrela do Departamento de Literatura da Católica, onde antes não se vira um aluno mais aplicado, nem mais lúcido leitor de poesia, nem mais perspicaz comentador de textos difíceis. Todos tinham como certo que se formaria com uma tese brilhante, seria um catedrático brilhante e um poeta ou um crítico igualmente brilhante. Mas um belo dia, sem explicações. decepcionou toda a gente, abandonando a tese em que trabalhava, renunciando à Literatura e à Universidade Católica e inscrevendo-se em San Marcos como aluno de Economia. Quando alguém lhe perguntava a que se devia essa deserção, ele confessava (ou parodiava) que a tese em que estivera a trabalhar lhe tinha aberto os olhos. Iria ter o título As Parémias em Ricardo Palma. Tivera de ler as Tradiciones Peruanas com lupa, à cata de provérbios, e como era consciencioso e rigoroso, tinha conseguido chegar a um caixote de fichas eruditas.
Depois, uma manhã, queimou o caixote com as fichas num descampado, ele e eu dançámos uma dança apache em volta das chamas filológicas, e decidiu que odiava a literatura e que até a economia era preferível. Javier fazia o estágio no Banco Central de Reserva e encontrava sempre pretexto para todas as manhãs dar um salto até à Rádio Pan-Americana. Do seu pesadelo paremiológico ficara-lhe o hábito de infligir-me provérbios sem tom nem som. Fiquei muito surpreendido por a tia Júlia, apesar de ser boliviana e viver em La Paz, nunca ter ouvido uma radionovela, ou posto os pés num teatro desde que interpretou a Dança das Horas, no papel de Crepúsculo, no ano em que terminou o colégio de freiras irlandeses (não te atrevas e perguntar-me há quantos anos foi isso, Marito). Caminhávamos da casa do tio Lucho, no fim da Avenida Armendáriz, para o Cinema Barranco.
Tinha sido ela mesmo a impor-me o convite, nesse meio-dia, da forma mais manhosa. Era a quinta-feira seguinte à sua chegada, e, embora não me agradasse a perspectiva de ser novamente vítima das piadas bolivianas, não quis faltar to almoço semanal. Tinha a esperança de não a encontrar, porque na véspera, as quartas-feiras à noite eram dias de visita à tia Gaby, ouvira a tia Hortensia comunicar num tom de quem está no segredo dos deuses: na sua primeira semana em Lima saiu quatro luzes e com quatro galãs diferentes, um deles casado. A divorciada tem pinta!
Quando cheguei a casa do tio Lucho, a seguir ao Pan-Americano do meio-dia, encontrei-a precisamente com um dos seus galãs, senti o doce prazer da vingança ao entrar na sala e descobrir a seu lado, olhando-a com olhos de conquistador, espaventoso de ridículo no seu fato de outras épocas, com a sua graveta de borboletas e de cravo ao peito, o tio Pancracio, um primo-irmão da minha avó. Enviuvara há séculos, caminhava com as pernas abertas, marcando as dez para as duas, e na família comentava-se maliciosamente as suas visitas porque não se importava de beliscar as criadas à vista de todos. Pintava o cabelo, usava relógio de bolso com corrente prateada e era visto diariamente nas esquinas do gradeamento da União, às seis da tarde, atirando piropos às operárias». In Mario Vargas Llosa, A tia Júlia e o Escrevedor, 1977, tradução de Cristina Rodriguez, Publicações dom Quixote, 1988, 2008, ISBN 978-846-123-866-8.

Cortesia PdQuixote/JDACT