Jamais houve homem menos
maquiavélico do que Maquiavel. In Villari
Maquiavel, o prisioneiro do maquiavelismo
«(…) Maquiavel conhece o terreno que pisa e tenta seguir os seus próprios
conselhos, serve-se da lisonja, essa perfídia dos fracos. É por isso que,
astuto, mesmo já apeado e com a desgraça a bater-lhe à porta, tenta manifestar
o seu obsequioso respeito pelos novos
senhores, manifestar a esperança abonatória em que a quietíssima cidade pudesse
continuar a viver tão honrada agora que era governada por estes magníficos de
Medici, como sucedera quando fora governada pelo antecessor dos novos senhores,
o excelente Lorenzo, falecido em 1492.
Só que é tempo de perseguição e nem a adulação lhe vale como escudo ou como espada.
No dia 10, o secretário fica a saber que lhe é proibido ausentar-se do domínio
florentino e que fora condenado a uma multa de mil florins; uma semana depois,
a17, é vedada durante um ano a sua entrada no Palazzo Vecchio, onde
servira; até 10 de Dezembro sofre ainda uma ignominiosa investigação ao modo
como administrara o dinheiro destinado ao pagamento da milícia florentina. A
justiça sempre gostou de se mostrar forte com os fortes enfraquecidos.
Inicia-se assim um tempo de exílio, que virá a agravar-se no ano
seguinte: as ideias deste homem irão castigá-lo através da penitência física,
pela dor e pela privação. Aquilo que havia sido a hipocrisia ao serviço da vida
diplomática e da manutenção da sua carreira, como servidor dos interesses de
Sua Senhoria, tornar-se-á razão e sistema, a vida sofrida, mestra. Uma conjura,
em que são dados como envolvidos Agostino di Luca Capponi, Pietro Paolo
Boscoli, Niccolò Valori e Giovanni Folchi, move-se contra os de Medici, o
assassínio do cardeal Giovanne pensado pelo bando como um meio cristão de
livrar a cidade do que consideram ser um dos fundamentos da tirania.
As autoridades descobrem-na e o nome de Maquiavel é encontrado numa
lista que um dos presos supostamente teria perdido. À demissão, à fixação de
residência, à condenação em multa, segue-se agora a prisão.
Ausente de casa, as autoridades
tinham lançado editais ameaçando com pena de confisco e por rebelião os que, sabendo onde ele estivesse, não o denunciassem em uma
hora e conseguiram assim, pelo medo, que não pela recompensa, deitar-lhe a mão.
Tudo se lhe muda do dia para a noite. Perdido o conforto das antecâmaras do
poder, segue-se agora o sofrimento da cadeia e, com ela, vinte e dois dias de cárcere
e de tortura, dias horrendos, de ferros e correntes, passado pelas cordas várias
vezes, temendo pela própria vida, como escreveu a 26 de Junho, numa carta ao sobrinho,
o mercador Giovanni Vernacci, filho de sua irmã Primavera, na altura comerciante
em Istambul. Pietro Boscoli e Agostino Capponi são condenados, pelos Otto (di Guardia), à morte por decapitação, sofrida a 23 de Fevereiro. Da
sua cela, as pernas atadas, Maquiavel segue-lhes os últimos momentos, os cânticos
fúnebres, intui o golpe de machado que arrancou a cabeça a Pietro, as duas machadadas
que foram necessárias para a separar do corpo do infeliz Agostino, como se a
vida quisesse demonstrar, simbolicamente, aos seus ineptos carrascos, quanto essa
incapacidade de o matarem era sintoma de uma inocência que até ao fim proclamara.
Incerta a sua responsabilidade, Maquiavel continua preso e é sujeito a tortura
para que confesse. Sofre o suplício de seis tratos de corda, o polé, içado e solto
em queda livre, quase a pontos de se desmembrar, as costelas se lhe rasgarem, a
dor o fazer vergar, dizendo assim a verdade ou a mentira, qualquer coisa que satisfizesse,
enfim, os juízes, sossegando-lhes a consciência punitiva pré-formada. Porém,
resiste, ironizando com a miserável condição em que se encontra, loca infecta, a que ele por ironia chama,
num verso entretanto escrito, a poesia como companheira, o sì delicato ostello». In Nicolau Maquiavel, O Príncipe, Introdução
de José António Barreiros, tradução de Maria Jorge Figueiredo, Editorial
Presença, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-23-3951-3.
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