«O artista assume o rosto da esfinge. Mas não
cria o deserto à sua volta. Umas vezes na luz, outras na treva, aquele sorriso,
apenas acenado, é um convite. Que se pode acolher, ignorar, rejeitar ou adiar.
Ε muitas vezes se adia. Sereno e confiante, o tempo lhe pertence, o artista
espera a sua hora. Uma hora que tarda, sabe-se lá, a espessura dos séculos. Mas
aquele rosto é de titânio: resiste, como a esfinge, à corrosão da areia.
Ε como a esfinge conserva, no gume do olhar, na inflexão dos lábios, o mesmo
sorriso de convite. Que é o outro nome da
esperança. Tem acontecido a muitos. Aconteceu a Petrónio. Mas esta é a sua
hora. Porque o homem vive a plenitude do absurdo, o desgarre dos valores
tradicionais, os caprichos ociosos da Fortuna; e, nostálgico da lama, repete,
no segredo da sua alma, a confissão de Flaubert: Uignoble me plait: c 'est
le sublime d'en bas. Quand il est vrai, il est aussi rare à trouver que celuid'en
haut. Por isso um abismo separa a excomunhão lançada por Menéndez Pelayo, o
grande Menéndez Pelayo, maldita seja
esta arte que degrada e envilece, da homenagem entusiástica de Raymond
Queneau: entre todos os escritores da
Antiguidade greco-latina, nenhum é mais moderno que Petrónio; poderia
entrar, e com o pé direito, na literatura contemporânea, e tomá-lo-íamos por um
dos nossos; [...] eu quero-lhe bem como a um irmão; [...] eu amo Petrónio como
Montaigne amava Paris, com ternura, mesmo nas suas verrugas e nas suas manchas;
com uma diferença apenas, é que eu lhe não encontro manchas nem verrugas.
Nem manchas nem verrugas. Mas o observador
desprevenido, e permeável aos tabus da moral vitoriana, só vê manchas e
verrugas. No estado fragmentário em que se encontra, o Satyricon é
um romance perturbador, assumidamente anti-heróico, uma espécie de romance da
canalha. A começar pelos protagonistas da acção. Senhora, declara Εncólpio, o narrador autodiegético, eu me confesso, que muitas vezes errei,
porque sou homem e ainda jovem. Uma traição eu cometi; um homem eu matei; um templo
eu profanei. Traidor, homicida, sacrílego. Ε poderia acrescentar: ladrão, embusteiro,
cobarde, frascário, e impotente. Naquele rosto polido, de olhos claros e
inquietos que Fellini elegeu, braceja um mar tormentoso e angustiado de crimes
e frustrações. E Ascilto, o companheiro desleal que lhe disputava a posse de
Gíton, o seu bem-amado? O esgar ebrirridente, a boca túmida entre malares
bestiais definem a imagem desbragada do cinismo e do sexo prepotente: o
instrumento pendurado num homem ou um homem pendurado no instrumento?
Quanto a Gíton, o belo adolescente
requestado por homens e mulheres, esse tem a perfídia sinuosa da cortesã que
vende os seus favores ao mais forte ou melhor colocado. Teatral, mimado,
calculista, faz de rameira na prisão e pinga-amor na hora do naufrágio; tão
feminina era a sua natureza que a mãe o convenceu a drapejar a estola no dia em
que devia envergar a toga viril. Afastado Ascilto, outro rival se alevantou
frente a Encólpio: o velho Εumolρo, o Bom
Cantor. A bem dizer, o Bom Cantor
cantava mal e só pedradas conquistava; mas a contar, ninguém o excedia: a
contar e a viver as suas falácias libertinas. Assim farsante e hedonista, com o
engano subsistiu, com o engano prosperou, com o engano representou o último
acto (tragicómico) da sua bizarra existência de gaudente.
Mas não são melhores os comparsas da acção.
Rei do festim, Τrimalquião é a figura mais trabalhada de quanto resta do Satyricon:
um misto de extravagância e de ridículo, de tenacidade vitoriosa e obsessão
da morte, ora tirano, ora arlequim, sempre vivaz na carne sofredora, o
minotauro de um labirinto de imprevisíveis meandros onde os intelectuais se
perdem e podem, até, ser devorados. Rico e supersticioso como Trimalquião, Liças
não tem o mesmo carisma de vitória: traído pela mulher, ultrajado por Encólpio,
miseramente o arrebata uma onda e mãos inimigas lhe escavam, no areal, inglória
sepultura. Ε que dizer das mulheres? Todas apresentam o estigma, passado ou
presente, da corrupção. Quartila, a lúbrica sacerdotisa de Priapo, transforma as
penitências em orgias e a inocência das crianças em deleites de voyeur; Fortunata,
arrancada à prancha dos escravos, pontifica na domus de Trimalquião como
senhora zelosa e semi-recatada, depois de ter sido bailarina impudica de
córdax; Τrifena, uma call-lady da alta-roda, vai para Tarento em
viagem de recreio ou de exílio; a deslumbrante Circe adora os amplexos dos
escravos, enquanto a sua escrava, Crísis, só quer os dos cavaleiros». In Walter
Medeiros, Do Desencanto à Alegria, o Satyricon de Petrónio e o Satyricon de
Fellini, Revista Humanitas, volume XLIX, 1997, Universidade de Coimbra.
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