quinta-feira, 17 de setembro de 2015

História de um casamento. Alexandre Borges. «Casar com esta princesa, portanto, era entrar directamente para alguns dos salões mais poderosos do Ocidente, incluindo os da Santa Sé. A complexidade da árvore genealógica não garantia que dona Isabel viesse a ser santa ou sequer rainha…»

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O rei Dinis I e a Rainha Santa Isabel
«(…) Seria de esperar que a herança de um rei tão influente pudesse ter ofuscado a memória da mulher; no entanto, sucedeu justamente o contrário. Isabel de Aragão é tão conhecida como o marido e, possivelmente, a mais recordada e admirada rainha consorte de toda a História de Portugal. Com a sua cultura, formação e acção diplomática, dona Isabel contribuiu decisivamente para que o reinado do marido fosse um grande reinado. Com Dinis I, formou uma família real que anunciava já a transição da Baixa Idade Média para o primeiro renascimento europeu, apoiando as artes, a cultura, a educação e a afirmação de Portugal no turbulento quadro político da Europa de então. No entanto, é sobretudo pela bondade de carácter que Isabel é recordada. Pela dedicação aos pobres, aos órfãos e aos doentes, pelos hospitais e asilos que fundou e por um episódio lendário segundo o qual teria transformado pão em rosas. Afinal, dona Isabel foi eleita santa pelo povo imediatamente após a morte, 300 anos antes de ser oficialmente canonizada pelo papa Urbano VIII. Tínhamos então um rei a quem Portugal deve boa parte da afirmação da identidade nacional e uma rainha santa. Juntos, tiveram dois filhos, um casal: ele sucedeu ao pai como rei português, ela tornou-se rainha de Castela. A família real perfeita, certo? Errado. Certamente, uma das mais atormentadas da História.
Em 1280, dona Isabel tinha cerca de dez anos e era já uma das princesas mais desejadas da Europa. No sangue, corriam-lhe múltiplas linhagens reais e imperiais. Era a filha primogénita do rei Pedro III de Aragão e de Constança de Hohenstaufen, princesa da Sicília, irmã dos futuros Afonso III e Jaime II de Aragão, neta de Jaime I e Violante da Hungria, e descendente, por via materna, de Frederico II, o sacro imperador romano-germânico, que, por ter passado a vida em guerra com Roma, foi rebaptizado pelo papa Gregório IX como o Anticristo. Recuando um pouco mais, descobria-se um vago parentesco com o futuro noivo, Dinis, já que ambos se encontravam unidos pelo tetravô Frederico I, o Barba Ruiva. Mas dona Isabel não descendia apenas de grandes senhores do poder temporal; provinha também de uma casta invulgarmente dada a senhoras do poder espiritual... Tinha, pelo menos, quatro santas na família: Santa Edviges, Santa Inês da Boémia, Santa Margarida e Santa Isabel da Hungria.
Casar com esta princesa, portanto, era entrar directamente para alguns dos salões mais poderosos do Ocidente, incluindo os da Santa Sé. A complexidade da árvore genealógica não garantia que dona Isabel viesse a ser santa ou sequer rainha, mas assegurava que, pelo menos, seria educada para ser ambas. É primeiro entregue aos cuidados do avô, que lhe chama a Rosa de Aragão, já que o seu simples nascimento teve o condão de trazer a paz a uma corte fustigada por intrigas, e depois, quando este morre, aos pais. Inspira-se no modelo das mulheres da família, cultas, devotas, rainhas perfeitas, e é educada por clarissas, o ramo feminino da Ordem Franciscana. Esta criança, que é disputada por infantes de Inglaterra, França, Nápoles e Sicília, vai ser entregue em casamento a Dinis I, rei de Portugal, depois de uma longa negociação que se estenderá por mais de um ano e que incluirá o envio de alguns embaixadores portugueses com a missão específica de travar as investidas de congéneres estrangeiros.
Para Portugal, casar o rei com a princesa aragonesa significa conseguir um aliado de peso na guerra contra o clero e a nobreza. Para o rei Pedro de Aragão, significa fazer da filha imediatamente rainha, uma vez que o português é o único dos pretendentes que se encontra já sentado no trono, ainda por cirna, tratando-se do herdeiro duma estirpe fundadora de um reino. Por outro lado, ganha ainda um aliado importante no equilíbrio de poderes da Península, cercando Castela, e nas lutas contra a França pela posse de Nápoles e da Sicília. Estávamos na Baixa Idade Média: um casamento real não era uma união entre um homem e uma mulher, era um extraordinário pedaço de estratégia política». In Alexandre Borges, Histórias Secretas de Reis Portugueses, Casa das Letras, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.

Cortesia de CdasLetras/JDACT