A Ordem de Avis e a monarquia portuguesa até ao final do reinado de
Dinis I
«(…) Uma breve análise
do teor destas motivações mostra-nos claramente que Dinis I vai lentamente
abandonar no teor dos diplomas a menção de motivos de natureza religiosa,
surgindo em seu lugar afirmações que nos parece quererem demonstrar que o rei
faz as doações não só como recompensa ao Mestre e à Ordem, mas também, e sobretudo,
porque entende que tais actos de liberalidade lhe serão favoráveis à sua
política de centralização e defesa do reino. Neste contexto, entende-se a
intromissão de Dinis I aquando da eleição do Mestre que sucedeu a Lourenço
Afonso em 1311. De facto, vendo a gran discordia que era entre os
freires, o rei decide actuar e intervir na escolha já efectuada,
justificando a sua atitude dizendo porque
a Ordim de Avis he cousa minha e dos reys que foram ante de mim e que depos mim
am de viir pera mandarmos sobrelos beens della e sobrellas Comendas... O
rei Dinis ordena, então, que o Mestre seja Garcia Peres, e é a ele que dirige
as cartas nos anos seguintes.
O facto de apenas termos
referências a Garcia durante um período de dois anos não nos permite saber se
chegou a ser aceite pelos restantes freires como Mestre da Ordem ou não. O
certo é que só conhecemos um documento não emitido pela chancelaria régia que
se lhe refira e que em 1316 é
decidido em Calatrava fazer uma visita à ordem portuguesa devido à discordia que entre ellos avia sobre
eleccion del Maestre. Se se trata ainda da eleição de Garcia (que para ser
efectiva deveria ter a confirmação do Mestre de Calatrava) ou se a visita dos
membros da Ordem castelhana se destinava a promover ou a confirmar a eleição do
Mestre seguinte (Gil Martins) não o sabemos. No entanto, em 1319 o rei passa uma carta de quitação
a Gil Martins de todas as dividas que a Ordem tinha até então, nomeadamente emprestidos de dinheiros como de pam que
mandei emprestar em Moura ao Meestre Dom Lourenço Affonso seu antecessor. Quererá
esta afirmação significar que Garcia apenas deteve o mestrado de facto (porque
o rei assim o ordenara), mas nunca de direito (porque não foi confirmado no
cargo)?
Um aspecto nos parece no
entanto digno de nota: Gil Martins é também um cavaleiro da confiança do
monarca. Assim se explicam não só o perdão das dividas (de um emprestimo de pão
e dinheiro, do não pagamento de colheitas, portarias e chancelarias) contraídas
pela Ordem ao rei, acima referido, como o facto de ter sido este Mestre o
escolhido para chefiar a recentemente criada Ordem de Cristo. Finalmente, e com
a saída de Gil Martins, o governo de Avis é entregue a Vasco Afonso.
Desconhecemos o seu processo de eleição mas não repugna aceitar que também aqui
o monarca tenha interferido, uma vez que este cavaleiro era do seu agrado. As
várias doações feitas à milícia durante o seu mestrado parecem-nos ser disso
testemunhos: padroado e outros direitos, logo seguidos do terço das rendas das
igrejas de Serpa, Mourão e Moura, o padroado das igrejas de Pavia, entre
outras. A mais importante foi, no entanto, a doação do castelo e senhorio de
Noudar: neste documento, o rei recorda que já havia doado a vila à Ordem, com a
condição de que aí construísse um castelo e mi
conhocessem d'el sempre senhorio e que o dessem e entregassem a mim ou a meu
mandado. Esta doação do castelo e senhorio implicava também a entrega das
rendas de Serpa, Moura e Mourão, já que estavam destinadas à manutenção daquela
fortaleza. É de salientar que a doação de Noudar evidencia, mais que nenhuma
outra, a protecção do monarca relativamente ao Mestre: diz o primeiro que poderia seer tempo que alguuns que lhi
querem mal polo meu serviço e pola mha voontade que el cumpriu. Para evitar
que lhe pudessem fazer mal no corpo e despoer
da onrra e do stado que tem, Dinis I fez a doação a título pessoal, isto é,
não dá o castelo e senhorio à Ordem mas ao seu mestre Vasco Afonso,
de modo que, aynda que em alguum tempo
lhi tolhesem o mestrado de Avis que lhi nom possam tolher o castelo e o
senhorio de Noudar. A propósito desta doação, duas questões se nos
colocaram: até que ponto teve importância o prestígio do Mestre para que a
doação fosse a nível pessoal? Qual seria a situação da Ordem em termos de
estabilidade interna, já que o documento refere expressamente, e por mais de
uma vez, que poderiam retirar a dignidade mestral a Vasco Afonso? Não dispomos,
de momento, de elementos informativos que nos permitam sequer lançar qualquer hipótese
a este respeito. Contudo, a resignação ao exercício do cargo de Mestre deve estar
intimamente relacionada com querelas entre os freires, que o Mestre, após a
morte do rei Dinis I, não terá conseguido controlar.
De tudo o que fica dito,
parece-nos importante reter que a Ordem Militar de Avis foi criada pelo
primeiro monarca português para o servir nomeadamente no que diz respeito à
guerra contra os muçulmanos. A atitude do monarca Afonso Henriques,
aparentemente simples, levanta-nos no entanto algumas questões, sobretudo no
que se refere à filiação de Avis em Calatrava. De facto, a ligação de um corpo
militar português (ou pelo menos que se pretendia sob controlo do rei) a um
congénere de Castela (também ele ligado à monarquia castelhana) podia aparecer
como um factor perigoso em caso de guerra entre os dois reinos. Cremos, no
entanto, que o monarca procurou assegurar a neutralidade de Calatrava num
possível conflito (através da concessão de vários benefícios a uma milícia dela
dependente), ao mesmo tempo que, dando a Avis uma regra cisterciense,
assegurava uma política de povoamento e defesa dos lugares conquistados». In
Maria Cristina A. Cunha, Estudos sobre a Ordem de Avis, séculos XII-XV,
Faculdade de Letras, Biblioteca Digital, Porto, 2009.
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