«(…) Na realidade, Camila fica cega
para tudo o resto; os seus olhos só vêem o guerreiro Cloreu:
unum ex omni certamine pugnae
caeca sequebatur totumque incauta per agmen
femineo praedae et spoliorum ardebat amore,
Era apenas a ele que, em todas as refregas,
perseguia, na sua cegueira e,
sem precaução [corria] por todo o campo,
numa ânsia bem feminina por
aquela presa e por aqueles despojos.
E assim esta enorme sede de despojos acaba
por se transformar numa sombra fatal para Camila e para as tropas que
estavam sob o seu comando. A caracterização desta figura apresenta, contudo,
alguns pontos que permanecem na obscuridade. De facto, quando era uma criança de
tenra idade, vai com o seu pai, Métabo, para o exílio. Mais tarde, porém, surge
perante o leitor como rainha incontestada dos Volscos, povo que tinha afastado
Métabo do trono e do seu território através de uma perseguição impiedosa. Como
se verifica este regresso à pátria e ao trono de onde o seu pai fora expulso? Virgílio
nada nos diz sobre o assunto. Associada a esta diferença na maneira de viver,
aparece também uma maneira diferente de se vestir. Enquanto criança e jovem
caçadora, Camila envergava como vestuário uma simples pele de tigre, e
este facto é apontado por Diana como um motivo de orgulho, dado o contraste estabelecido:
Pro crinali auro, pro longae tegmine pallae
tigridis exuuiae per dorsum a uertice
pendent.
Em vez de um gancho de ouro no cabelo, em
vez de um longo vestido, é uma
pele de tigre que, desde a cabeça, lhe pende
pelas costas.
Quando, porém, se apresenta como rainha dos
Volscos, já aparece adornada com um belo manto de púrpura e com um gancho de
ouro no cabelo, fazendo com que todos fiquem admirados com a sua beleza. Mais
tarde ainda, não contente com as suas ricas vestes reais, vai perseguir um
guerreiro, só porque ele vem adornado com vestes ricas e vistosas. Terá esta
diferente maneira de vestir algo a ver com o seu comportamento guerreiro? É
que, no tempo em que andava coberta com uma pele de tigre, conseguia vencer,
sem dificuldade, os animais da floresta, apesar de ser ainda uma criança;
quando, porém, aparece ricamente vestida e, sobretudo, quando deseja os
vistosos despojos dos outros, apesar de vencer uma série de guerreiros, acaba
por suportar em si própria a dureza da morte. Mas, haverá alguma razão para a
existência destes pontos obscuros na figura de Camila?
A este facto não serão, naturalmente,
estranhos os diferentes modelos que Virgílio utilizou no desenho desta
sua virgem guerreira. Na verdade,
foram vários os elementos que contribuíram para o esboço desta personagem. Camila
é, antes de mais, uma personagem itálica, ainda que não conheçamos com muita
profundidade os elementos locais de que Virgílio se terá servido, pois o
Mantuano é o único autor que dela nos fala. Em contrapartida, sabemos que no
delineamento desta jovem heroína entraram elementos de algumas personagens mitológicas,
nomeadamente Hipólito, Pentesileia e Harpálice.
Hipólito é o modelo de fundo. O amor de
Ártemis, tal como o amor de Diana em relação a Camila, é uma das grandes
linhas de orientação da vida de Hipólito, mas, em ambos os casos, a protecção
concedida por estas deusas não impede que elas se afastem no momento da morte. Além
disso, uma das ocupações predilectas de Ártemis é a caça e, por isso, Hipólito
passa a sua vida nesta tarefa, como vai acontecer com Camila antes de ir
para a guerra. Pentesileia é, como sabemos, a rainha das Amazonas que, após a
morte de Heitor, participa na guerra de Tróia, onde é morta por Aquiles. Trata-se,
pois, de uma mulher que desempenha as altas funções de rainha no meio de um
povo que tinha a particularidade de ser constituído só por mulheres, uma vez
que os homens que aí eram admitidos se destinavam apenas a trabalhos servis e à
procriação. Esta facto implica que a corte da rainha teria de ser
obrigatoriamente feminina e isto vem realçar ainda mais a semelhança com Camila,
que nos aparece rodeada por uma corte formada apenas por virgens como ela». In
João Manuel Nunes Torrão, Camila, A Virgem Guerreira, Revista Humanitas, volume
XLV, 1993, Universidade de Coimbra.
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