«(…) A imagem estabelece desde
logo a proporção entre os dois intervenientes, o vigor do poeta e a qualidade
majestosa das vítimas, que fizeram da invectiva um terreno de lutas sem
quartel; delas podia a assistência colher uma mensagem instrutiva, fundada na
experiência quotidiana da comunidade ateniense. A aspereza característica dos
ataques de Cratino é mais tarde confirmada por Platónio, que a considera
uma herança de Arquíloco: Cratino (...), como é normal em imitadores de Arquíloco,
é um poeta áspero nos ataques que dirige.
Ε logo o mesmo comentador
estabelece um curioso paralelo com Aristófanes, que, também ele entusiasta da
invectiva pessoal, conseguiu no entanto conferir-lhe elegância e finura, que a
purificaram de uma vulgaridade a que Cratino não soube escapar: Não
faz, como Aristófanes, sobressair a graça nas suas piadas. Acrescentemos a
informação de alguém, que, ao reflectir sobre o passado da comédia, acrescenta
à imagem de Cratino outros méritos: o empenho na definição estrutural do
género, mesmo que com um sucesso parcial, a ser mais tarde aperfeiçoado por Aristófanes,
bem como o estabelecimento de um objectivo agora mais nítido: Cratino elevou
α três as personagens da comédia, assim consolidando uma estrutura ainda
inconsistente, e à graça adicionou a utilidade, pelo ataque contra os malvados,
servindo-se da comédia como de uma espécie de chicote público.
Dos dois testemunhos ressalta a
noção de uma linha de continuidade a unir Cratino e Aristófanes: ambos
empenhados em finalidades idênticas, de valorização artística e justificação de
um objectivo para a arte cómica, distingue-os apenas a meta atingida, Cratino
detentor do mérito de quem rasga com ousadia um caminho novo, e Aristófanes de
quem prossegue e leva ao sucesso pleno o projecto de que é herdeiro. Deixemos,
por fim, falar o próprio Cratino que, em palavras breves, nos deixa repetidos
manifestos de uma consciência já clara das dificuldades da arte e do desafio
que se coloca ao comediógrafo, perante um público de humor oscilante e
imprevisível nas suas reacções. Mais do que à defesa da qualidade estética ou
do espírito criativo, Cratino está atento à missão didáctica da comédia, como factor primordial na
avaliação do génio de um poeta. Ora é um coro que afirma o prazer que tem em
vir, de livre vontade, para o convívio de um público requintado; logo a
confissão de um arrojo que lhe dita todas as ousadias: Não há nada que este
coro não leve por diante, nada a que se não atreva.
Depois o orgulho pela obra
produzida, que o ergue sobre altaneiro pedestal, inacessível a rivais mais
modestos: Esta comédia (Quírones) representa para mim dois anos de
trabalho intenso, a que acrescentava, segundo Aristides: Α outros poetas
não basta toda uma vida para obterem uma reles imitação.
Por fim, o reconhecimento de que,
mais do que a qualidade da forma, é o poder da mensagem que impõe o verdadeiro
génio. Numa peça sugestivamente intitulada Dionisos, Cratino
suspirava: Que vença aquele que melhor falar à cidade! E, em anos
próximos, nos Quírones, repetia, agora numa referência inequívoca
à comédia: Eis α razão por que nós, os Quírones, aqui estamos: para vos
darmos os nossos conselhos. Por vezes, mesmo que sem palavras a aboná-lo,
um simples título pode comportar a evidência de um conteúdo; Representações
teatrais é o exemplo claro de uma promessa de tratamento alargado de
questões ligadas à produção teatral. Ou a notícia indirecta, colhida no
argumento de alguma peça perdida, da utilização do coro como transmissor do sentir
do poeta sobre a arte que cultiva. Estão, assim, definidas as duas linhas
mestras do perfil artístico de Cratino, em harmoniosa concertação: é
pelo vigor do ataque nominal, a que se soma a consciência progressivamente mais
lúcida da definição da natureza e exigências da arte, que o velho poeta orienta
a comédia num caminho ascendente». In Maria de Fátima Silva, Cratino, A Sombra
de um Grande Poeta, Revista Humanitas, volume XLIX, 1997, Universidade de
Coimbra.
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