«Nesse ano de 1548, em que abriu em Coimbra o Colégio
das Artes, fundado por João III, chegava à cidade do Mondego o estudante José
de Anchieta. José de Anchieta era filho do escribano real Juan de Anchieta, nascido no País Basco, e de dona
Meneia Diaz de Clavijo y Lharena. Esta senhora era viúva do bacharel Nuno Nunez
de Villavicencio, de quem tivera uma filha e um filho. José de Anchieta era
filho do segundo matrimónio de sua mãe e chegou a Coimbra, na companhia de seu
irmão mais velho, filho do primeiro matrimónio, de seu nome Pedro Nunez.
Este Pedro Nunez aparece matriculado na Faculdade de Cânones da Universidade de
Coimbra, como natural de tenerife das
Canárias de Castella. O registo em questão, encontrado pela minha
saudosa amiga, Maria Georgina Trigo Ferreira, encontra-se no vol. 5,
caderno l.º dos Autos e Graus de 1554 a 1557, e reza assim: provou pedro nunez de tenerife das Canárias
de Castella diante do Sor frei diogo de murça Reitor dous cursos em Cânones que
começarão pollo outubro de I bc quarenta e oito e se acabarão por I
bc Lta e forão testemunhas que asi o jurarão os bacharéis diogo
madeira e hieronimo sueiro e eu diogo dazevedo o screvi aos xi dias de Julho de
I bc Lta e quatro anos yeronimo soeyro dioguo madeira (A. Costa
Ramalho, Para a História do Humanismo em Portugal I, Coimbra, 1988).
Como em tempos escrevi, há ainda mais dois documentos relativos a Pedro
Nunez de Tenerife das Canárias de Castela, mas só este revela a data do início
da sua frequência da Universidade. José de Anchieta chegou portanto a
Coimbra na companhia de seu irmão em 1548
e já se encontrava na cidade em Outubro deste ano. Terá assistido à abertura do
Colégio das Artes de que se sabe ter sido aluno, por uma referência indirecta? O
Colégio das Artes abriu solenemente em 21 de Fevereiro de 1548, com uma oração de Arnold Fabrice,
conhecido pela forma aportuguesada de seu nome latino, como Arnaldo Fabrício. A
oração existe ainda hoje e foi traduzida e comentada, numa dissertação de licenciatura dactilografada
(Maria José Sousa Pacheco, Coimbra, 1959). É um belo discurso humanístico.
O Colégio das Artes não inaugurou
os estudos de Humanidades em Coimbra. Antes da sua fundação, os estudos de
Humanidades eram ministrados na Faculdade de Letras que funcionava no Mosteiro
de Santa Cruz, ainda antes da transferência da Universidade para Coimbra, em 1537. O Colégio das Artes conferia aos
seus alunos os graus de bacharel, licenciado e mestre em Artes, mas a sua
frequência era obrigatória, durante um certo número de anos, como escola
preparatória de ingresso nas outras Faculdades. Ε duas delas exigiam o curso
completo de Artes para a sua admissão. Eram a Faculdade de Teologia e a
Faculdade de Medicina. A tradição dos médicos devotados à Literatura tem aqui
um dos seus prováveis fundamentos.
Do tempo em que as Artes eram
estudadas em Santa Cruz, há testemunhos vários sobre o funcionamento do curso
e, entre eles, uma oração de sapiência de Outubro de 1539, pronunciada por Mestre Juán Fernández, um sevilhano conhecido
na tradição coimbrã, pelo nome aportuguesado de João Fernandes. Esta
oração de 1539, extremamente interessante,
foi traduzida e comentada por um aluno, numa dissertação de mestrado (Fernando
Alexandre M. P. Lopes, Coimbra, 1993). Com as informações que possuímos sobre
as Artes em Santa Cruz e sobre o Colégio das Artes, podemos fazer uma ideia
aproximada dos estudos de Anchieta em Coimbra, embora não
possuamos qualquer documento da sua frequência da Universidade onde certamente
não chegou a entrar, visto que mesmo certas disciplinas mais adiantadas, como a
Filosofia, eram ministradas no Colégio das Artes. Também não deve ter concluído
o curso de Artes, pois nunca foi chamado de bacharel ou licenciado. Mas deve
ter sido um excelente aluno, a avaliar pela qualidade dos seus versos e da sua
prosa em latim humanístico. Ε também, como tive ocasião de acentuar no
Congresso de La Laguna, em Junho de 1997,
deve ter chegado a Coimbra com um bom conhecimento da língua latina, como era
então uso entre as famílias instruídas, onde há casos de os filhos terem
iniciado o latim, aos três anos de idade.
Preparação semelhante à sua, em
grau talvez ainda mais adiantado, devia possuir seu irmão Pedro que se
matriculou directamente em Cânones, sem passar pelo ensino preparatório do
Colégio das Artes. A inferência de que José foi aluno do Colégio das Artes
tira-se dos factos seguintes: …pelo Processo Apostólico de Lisboa. Arquivo
Secreto Vaticano por depoimento do padre Álvaro Pires, foi Anchieta colega
de aula de Jorge Ataíde. Diogo Teive no processo inquisitorial, a que foi
submetido em 1550, arrola como
testemunha de sua ortodoxia esse seu aluno. Esta informação é tirada do livro Anchieta,
o apóstolo do Brasil do padre Hélio Abranches Viotti, que para o processo
de Diogo Teive cita Mário Brandão, A Inquisição e os professores do Colégio
das Artes, (vol. I, Coimbra,
1948). Temos, portanto, Anchieta, colega de classe de Jorge Ataíde, filho do
poderoso conde da Castanheira, valido del-rei João III.
Mário Brandão no referido livro,
dá uma informação complementar sobre a carreira académica de Jorge Ataíde,
desenrolada com toda a normalidade, isto é, sem interrupções nem reprovações,
que veio a terminar, pelo que respeita ao Colégio das Artes, com o grau de
bacharel em 7 de Março de 1554,
com o de licenciado em Artes em 29 de Março de 1555 e o de mestre em 3 de Maio de 1555. Anchieta, se tivesse continuado em Coimbra, teria, portanto,
recebido os graus académicos de Artes também entre 1554 e 1555. Ora a 8
de Maio de 1553, tinha embarcado
em Lisboa, o irmão José de Anchieta da Companhia de Jesus, com destino ao Brasil.
Devo esclarecer que o facto de
ter entrado em Coimbra na Companhia de Jesus não o impedia de frequentar o
Colégio das Artes. Antes pelo contrário. Com efeito, os jesuítas estavam
interessados em angariar vocações entre os alunos do Colégio das Artes que
viria a cair-lhes nas mãos em 1555.
Sabemos dessa táctica de conquista dos melhores alunos e dos membros da
nobreza, porque alguns reparos feitos a essa situação, nomeadamente, por Diogo
Teive, vêm a figurar entre as acusações contra o humanista, no processo da
Inquisição (maldita),
que
está publicado». In Américo Costa Ramalho, José de Anchieta em Coimbra, Revista
Humanitas, volume XLIX, 1997, Universidade de Coimbra.
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