A
ampulheta
«(…) Mas não tendes vocação para
a nossa regra, senhor Álvaro. A sua memória percorreu o tempo numa vertigem
cada vez mais rápida em que as imagens passavam fugazes pelo espírito do
fidalgo centenário: um combate feroz contra castelhanos numa caravela, à vista
da costa algarvia; o conde de Avranches trespassado pela sua espada na triste
jornada de Alfarrobeira; a excitação enquanto galopava à desfilada antes de
se cobrir de glória nas justas de Lille, quando derrubara com a lança Roger de
Bac e imobilizara com a acha Robert de Plymouth; logo passou para a luta
desesperada pela sobrevivência no palanque de Tânger e sentiu um nó no estômago
ao observar o ar comprometido do infante Henrique, do conde de Arraiolos e do
marechal enquanto viam o infante Fernando caminhar ingenuamente para o cativeiro
fatal; experimentou, uma vez mais, a euforia que sentira ao derrubar um
cavaleiro mouro à vista de Ceuta, no ano de 1425; sofreu de novo a dor forte do impacte de um virote bretão no
seu braço, numa batalha naval junto a Tarifa; quase perdera o fôlego na corrida
que o levara a entrar em turbilhão pela porta de Ceuta na companhia dos
infantes Duarte e Henrique, na grande vitória de 1415. Álvaro Ataíde era o último conquistador vivo de Ceuta.
A sua carreira de lidador começara nessa jornada, há oitenta e cinco anos, e só
terminara há dez, quando el-rei João, o segundo, o dispensara do serviço
militar, apesar dos seus veementes protestos. Sempre quisera morrer de espada na
mão, porém, estava destinado a um fim inglório, deitado numa cama ou recostado
numa cadeira, consumido pelo tempo, que o fazia definhar lentamente.
O corpo adormecido no cadeirão
acalmou-se quando a mão de Álvaro encontrou o punho da sua espada. Na sua mente
ressoou o tropel de uma cavalgada animada. O fresco da noite provocou-lhe um
violento ataque de tosse. A espada caiu com estrondo, e, ele, estremunhado,
gritou pelo seu criado. Este acorreu, deixando cair pelo caminho duas das
moedas que acabara de ganhar. Ajudou o fidalgo a deitar-se e serviu-lhe um
caldo de vitela com umas folhinhas de hortelã. Recomposto, Álvaro Ataíde ingeriu
a comida, reclamando de falta de sal; o criado retirou umas pedrinhas de um
recipiente de marfim representando homens barbados com armaduras, feito por um
artífice do Benim. Álvaro adormeceu de novo. Não chegara verdadeiramente a
acordar, pois a sua mente continuava no passado, para onde fora levada pelo fio
do tempo.
O
primeiro voo
Por entre penedos altaneiros um
ninho de águia guardava uma cria. Os seus progenitores pairavam sobre o topo da
serra do Monchique; um deles caiu em voo picado e regressou aos céus com um coelho nas
garras. Pouco depois, mãe e cria partilhavam regaladamente os restos da presa. No
final do repasto, a cria esticou as asas, agitou-as, mas não saiu do lugar, apesar
dos empurrões da mãe. Pouco depois, as aves agitaram-se quando ouviram ruídos estranhos.
Vamos, rapazes. Estamos quase no cimo. Para quê tanto esforço? A minha montada está
a desfalecer. Ireis gostar da vista, e poderemos ver a armada real. Conseguimos
ver Ceuta? Não, meu caro. A terra dos mouros não se vê do reino do Algarve..., nem
cá de cima. Estais certo de que iremos sobre Ceuta? Ouvi dizer que el-rei João
o afirmou ontem. Pode ser apenas para enganar espiões que andem entre nós... Então,
qual seria nosso alvo? Creio que Gibraltar, ou Málaga, no reino de Granada. Não
pode ser, pois esse reino é pendência d'el-rei de Castela. Se atacarmos esses infiéis
danados, os castelhanos virão outra vez contra nós. E nós temos medo desses perros?
El-rei nosso senhor venceu-os, e o condestável derrotou-os na sua própria terra.
Tende-vos, moço, que já chega de gastos e de destruição. O povo está cansado da
guerra...
Subitamente,
os cavaleiros interromperam a conversa para admirarem a paisagem. Os seis jovens
haviam subido a serra guiados por um primo do alcaide de Silves. Estava-se em finais
de Julho e num dia límpido, como aquele, era possível avistar ao longe o promontório
sacro, a finisterra da cristandade onde estivera sepultado o corpo do mártir S.
Vicente antes de ser levado para Lisboa, em tempos d'el-rei Afonso Henriques. De
um lado, a costa corria para norte, em direcção a Lisboa, e avistava-se quase toda
a linha litorânea até à península de Tróia; do outro, a orla costeira era visível
até às imediações de Faro. A nascente, podia observar-se a ondulação da serra do
Caldeirão, a sul encontrava-se a foz do Arade, o rio que passava por Silves
antes de mergulhar no oceano. Olhando para a direita divisava-se a vila de
Lagos, a maior povoação que se avistava dali. Embora a paisagem natural fosse, de
facto, deslumbrante, o que mais espantava aqueles rapazes era o enorme conjunto
de embarcações que cobriam o mar na zona de Lagos. Ali estava a armada de que eles
próprios faziam parte». In João Paulo O. Costa, O Fio do Tempo,
2009, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-989-644-135-7.
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