terça-feira, 29 de setembro de 2015

O Fio do Tempo. João Paulo O. Costa. «Subitamente, os cavaleiros interromperam a conversa para admirarem a paisagem. Os seis jovens haviam subido a serra guiados por um primo do alcaide de Silves. Estava-se em finais de Julho e num dia límpido, como aquele, era possível avistar ao longe…»

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A ampulheta
«(…) Mas não tendes vocação para a nossa regra, senhor Álvaro. A sua memória percorreu o tempo numa vertigem cada vez mais rápida em que as imagens passavam fugazes pelo espírito do fidalgo centenário: um combate feroz contra castelhanos numa caravela, à vista da costa algarvia; o conde de Avranches trespassado pela sua espada na triste jornada de Alfarrobeira; a excitação enquanto galopava à desfilada antes de se cobrir de glória nas justas de Lille, quando derrubara com a lança Roger de Bac e imobilizara com a acha Robert de Plymouth; logo passou para a luta desesperada pela sobrevivência no palanque de Tânger e sentiu um nó no estômago ao observar o ar comprometido do infante Henrique, do conde de Arraiolos e do marechal enquanto viam o infante Fernando caminhar ingenuamente para o cativeiro fatal; experimentou, uma vez mais, a euforia que sentira ao derrubar um cavaleiro mouro à vista de Ceuta, no ano de 1425; sofreu de novo a dor forte do impacte de um virote bretão no seu braço, numa batalha naval junto a Tarifa; quase perdera o fôlego na corrida que o levara a entrar em turbilhão pela porta de Ceuta na companhia dos infantes Duarte e Henrique, na grande vitória de 1415. Álvaro Ataíde era o último conquistador vivo de Ceuta. A sua carreira de lidador começara nessa jornada, há oitenta e cinco anos, e só terminara há dez, quando el-rei João, o segundo, o dispensara do serviço militar, apesar dos seus veementes protestos. Sempre quisera morrer de espada na mão, porém, estava destinado a um fim inglório, deitado numa cama ou recostado numa cadeira, consumido pelo tempo, que o fazia definhar lentamente.
O corpo adormecido no cadeirão acalmou-se quando a mão de Álvaro encontrou o punho da sua espada. Na sua mente ressoou o tropel de uma cavalgada animada. O fresco da noite provocou-lhe um violento ataque de tosse. A espada caiu com estrondo, e, ele, estremunhado, gritou pelo seu criado. Este acorreu, deixando cair pelo caminho duas das moedas que acabara de ganhar. Ajudou o fidalgo a deitar-se e serviu-lhe um caldo de vitela com umas folhinhas de hortelã. Recomposto, Álvaro Ataíde ingeriu a comida, reclamando de falta de sal; o criado retirou umas pedrinhas de um recipiente de marfim representando homens barbados com armaduras, feito por um artífice do Benim. Álvaro adormeceu de novo. Não chegara verdadeiramente a acordar, pois a sua mente continuava no passado, para onde fora levada pelo fio do tempo.

O primeiro voo
Por entre penedos altaneiros um ninho de águia guardava uma cria. Os seus progenitores pairavam sobre o topo da serra do Monchique; um deles caiu em voo  picado e regressou aos céus com um coelho nas garras. Pouco depois, mãe e cria partilhavam regaladamente os restos da presa. No final do repasto, a cria esticou as asas, agitou-as, mas não saiu do lugar, apesar dos empurrões da mãe. Pouco depois, as aves agitaram-se quando ouviram ruídos estranhos. Vamos, rapazes. Estamos quase no cimo. Para quê tanto esforço? A minha montada está a desfalecer. Ireis gostar da vista, e poderemos ver a armada real. Conseguimos ver Ceuta? Não, meu caro. A terra dos mouros não se vê do reino do Algarve..., nem cá de cima. Estais certo de que iremos sobre Ceuta? Ouvi dizer que el-rei João o afirmou ontem. Pode ser apenas para enganar espiões que andem entre nós... Então, qual seria nosso alvo? Creio que Gibraltar, ou Málaga, no reino de Granada. Não pode ser, pois esse reino é pendência d'el-rei de Castela. Se atacarmos esses infiéis danados, os castelhanos virão outra vez contra nós. E nós temos medo desses perros? El-rei nosso senhor venceu-os, e o condestável derrotou-os na sua própria terra. Tende-vos, moço, que já chega de gastos e de destruição. O povo está cansado da guerra...
Subitamente, os cavaleiros interromperam a conversa para admirarem a paisagem. Os seis jovens haviam subido a serra guiados por um primo do alcaide de Silves. Estava-se em finais de Julho e num dia límpido, como aquele, era possível avistar ao longe o promontório sacro, a finisterra da cristandade onde estivera sepultado o corpo do mártir S. Vicente antes de ser levado para Lisboa, em tempos d'el-rei Afonso Henriques. De um lado, a costa corria para norte, em direcção a Lisboa, e avistava-se quase toda a linha litorânea até à península de Tróia; do outro, a orla costeira era visível até às imediações de Faro. A nascente, podia observar-se a ondulação da serra do Caldeirão, a sul encontrava-se a foz do Arade, o rio que passava por Silves antes de mergulhar no oceano. Olhando para a direita divisava-se a vila de Lagos, a maior povoação que se avistava dali. Embora a paisagem natural fosse, de facto, deslumbrante, o que mais espantava aqueles rapazes era o enorme conjunto de embarcações que cobriam o mar na zona de Lagos. Ali estava a armada de que eles próprios faziam parte». In João Paulo O. Costa, O Fio do Tempo, 2009, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-989-644-135-7.

Cortesia CL/TDebates/JDACT