terça-feira, 15 de setembro de 2015

A Conquista de Ceuta. 1415. João Monteiro e António Costa. «A animação era grande no Restelo, com a concentração da imensa armada portuguesa, que fazia os últimos preparativos para se lançar ao mar, rumo a um destino ainda desconhecido da maioria dos participantes»

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«(…) Isto contou-me João Gomes Silva, alferes-mor do rei e um dos participantes na expedição, quase três décadas depois da grande conquista. Infelizmente, eu, Gomes Eanes Zurara, guarda-mor da livraria real e do arquivo da Torre do Tombo, incumbido por el-rei Afonso V de escrever a crónica deste feito, não tive possibilidade de participar na campanha de 1415. Por isso, restou-me recordá-la em livro, na certeza de que a única coisa que verdadeiramente resiste ao tempo é a escrita e que, através dela, os bons feitos de armas serão sempre lembrados e quem os praticou poderá acalentar a esperança de receber por eles um legítimo galardão. Agora, já velho e cansado, recordo com saudade os dias felizes mas trabalhosos em que, depois de estudar numerosos documentos e conversar com diversos anciãos, compus essas longas páginas.

24 de Julho de 1415. Reunir a frota
A animação era grande no Restelo, com a concentração da imensa armada portuguesa, que fazia os últimos preparativos para se lançar ao mar, rumo a um destino ainda desconhecido da maioria dos participantes. O caso não era para menos: fazia três ou quatro anos que o rei João I, a rainha dona Filipa de Lencastre, os seus filhos mais velhos (os infantes Duarte, Pedro e Henrique) e um pequeno núcleo de colaboradores e conselheiros da corte (com destaque para o condestável Nuno Álvares Pereira, o alferes-mor João Gomes Silva, o prior do Hospital, Álvaro Gonçalves Camelo, o capitão-mor, Afonso Furtado, o vedor da fazenda, João Afonso Alenquer, o escrivão da puridade, Gonçalo Lourenço Gomide, e o escrivão da câmara do rei, Gonçalo Caldeira) guardavam religiosamente um segredo que intrigava metade da Europa.
Contou-me João Gomes Silva que, quando se assinaram as pazes entre Portugal e Castela, em Outubro de 1411, em Ayllón (Segóvia), na sequência de uma embaixada em que ele próprio participou (na companhia de Martim do Sem, governador da Casa de Duarte I, e do Beliago, deão da Sé de Coimbra), o rei português respirara de alívio. É certo que o novo monarca castelhano, João II, era ainda uma criança quando lhe morreu o pai, Henrique III, mas os seus tutores, a rainha viúva, Catarina Lencastre, irmã da nossa dona Filipa, e o tio Fernando de Aragão, pareciam sinceramente dispostos a preservar uma paz por que os povos já ansiavam e que, se Deus quisesse, haveria de ser ratificada quando o jovem monarca castelhano atingisse a maioridade e pudesse governar o reino vizinho. Tudo foi assinado e confirmado entre as partes, e devidamente apregoado em ambos os reinos, como eu pude confirmar nos documentos à minha guarda no arquivo da Torre do Tombo.
Sucedeu, porém, que nem todos se alegraram com o pregão que anunciava o termo de uma longa e desgastante guerra luso-castelhana iniciada há quase três décadas (já, para não falar nas guerras fernandinas que a antecederam). É que, se as gerações mais velhas e sensatas rejubilaram com a possibilidade de cultivarem as suas terras, de desenvolverem os seus negócios ou de armarem os seus navios em segurança, já, muitos dos fidalgos e homens mais novos lamentavam a chegada da paz e receavam ver comprometida a sua oportunidade de alcançarem honra, proveito e glória em novas aventuras militares; achavam que a velha geração de Aljubarrota estava esgotada pelo cansaço acumulado em campanhas sem fim e que só pensava agora em descansar à sombra dos louros conquistados, condenando os jovens ao imobilismo ou forçando-os a procurarem outros reinos e cenários para se cobrirem de iguais louros.
Quando compus a minha crónica, já muitos dos heróis de Ceuta tinham falecido, e nem todos os que ainda eram vivos nos anos de 1449 e 1450 se prestaram a falar. Mas, dos testemunhos que recolhi, sobretudo da boca do alferes-mor e do infante Henrique, em 1411 o velho monarca lusitano ainda acalentava alguma esperança de lavar em sangue muçulmano as mãos que cobrira de feridas nas guerras que travara contra os castelhanos na Península Ibérica. Por isso, João I, o da Boa Memória, chegou a desafiar Fernando de Antequera para uma guerra conjunta contra Granada, o bastião muçulmano que sobrevivia no Sul da Hispânia, mas o regente de Castela não correspondeu ao pedido, de tão atarefado que andava com a disputa pelo trono aragonês». In João Gouveia Monteiro e António Martins Costa, 1415, A Conquista de Ceuta, Manuscrito, 2015, ISBN 978-989-881-804-1.

Cortesia de Manuscrito/JDACT