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Isto contou-me João Gomes Silva, alferes-mor do rei e um dos participantes na expedição,
quase três décadas depois da grande conquista. Infelizmente, eu, Gomes Eanes Zurara,
guarda-mor da livraria real e do arquivo da Torre do Tombo, incumbido por
el-rei Afonso V de escrever a crónica deste feito, não tive possibilidade de participar
na campanha de 1415. Por isso,
restou-me recordá-la em livro, na certeza de que a única coisa que
verdadeiramente resiste ao tempo é a escrita e que, através dela, os bons feitos
de armas serão sempre lembrados e quem os praticou poderá acalentar a esperança
de receber por eles um legítimo galardão. Agora, já velho e cansado, recordo com
saudade os dias felizes mas trabalhosos em que, depois de estudar numerosos documentos
e conversar com diversos anciãos, compus essas longas páginas.
24 de Julho de 1415. Reunir a frota
A animação era grande no Restelo,
com a concentração da imensa armada portuguesa, que fazia os últimos preparativos
para se lançar ao mar, rumo a um destino ainda desconhecido da maioria dos participantes.
O caso não era para menos: fazia três ou quatro anos que o rei João I, a rainha
dona Filipa de Lencastre, os seus filhos mais velhos (os infantes Duarte, Pedro
e Henrique) e um pequeno núcleo de colaboradores e conselheiros da corte (com
destaque para o condestável Nuno Álvares Pereira, o alferes-mor João Gomes Silva,
o prior do Hospital, Álvaro Gonçalves Camelo, o capitão-mor, Afonso Furtado, o vedor
da fazenda, João Afonso Alenquer, o escrivão da puridade, Gonçalo Lourenço Gomide,
e o escrivão da câmara do rei, Gonçalo Caldeira) guardavam religiosamente um segredo
que intrigava metade da Europa.
Contou-me João Gomes Silva que,
quando se assinaram as pazes entre Portugal e Castela, em Outubro de 1411, em Ayllón (Segóvia), na sequência
de uma embaixada em que ele próprio participou (na companhia de Martim do Sem, governador
da Casa de Duarte I, e do Beliago, deão da Sé de Coimbra), o rei português respirara
de alívio. É certo que o novo monarca castelhano, João II, era ainda uma criança
quando lhe morreu o pai, Henrique III, mas os seus tutores, a rainha viúva, Catarina
Lencastre, irmã da nossa dona Filipa, e o tio Fernando de Aragão, pareciam sinceramente
dispostos a preservar uma paz por que os povos já ansiavam e que, se Deus quisesse,
haveria de ser ratificada quando o jovem monarca castelhano atingisse a maioridade
e pudesse governar o reino vizinho. Tudo foi assinado e confirmado entre as partes,
e devidamente apregoado em ambos os reinos, como eu pude confirmar nos documentos
à minha guarda no arquivo da Torre do Tombo.
Sucedeu, porém, que nem todos se alegraram
com o pregão que anunciava o termo de uma longa e desgastante guerra luso-castelhana
iniciada há quase três décadas (já, para não falar nas guerras fernandinas que a
antecederam). É que, se as gerações mais velhas e sensatas rejubilaram com a possibilidade
de cultivarem as suas terras, de desenvolverem os seus negócios ou de armarem os
seus navios em segurança, já, muitos dos fidalgos e homens mais novos lamentavam
a chegada da paz e receavam ver comprometida a sua oportunidade de alcançarem honra,
proveito e glória em novas aventuras militares; achavam que a velha geração de Aljubarrota
estava esgotada pelo cansaço acumulado em campanhas sem fim e que só pensava
agora em descansar à sombra dos louros conquistados, condenando os jovens ao imobilismo
ou forçando-os a procurarem outros reinos e cenários para se cobrirem de iguais
louros.
Quando
compus a minha crónica, já muitos dos heróis de Ceuta tinham falecido, e nem
todos os que ainda eram vivos nos anos de 1449
e 1450 se prestaram a falar. Mas, dos testemunhos que recolhi, sobretudo da
boca do alferes-mor e do infante Henrique, em 1411 o velho monarca lusitano ainda
acalentava alguma esperança de lavar em sangue muçulmano as mãos que cobrira de
feridas nas guerras que travara contra os castelhanos na Península Ibérica. Por
isso, João I, o da Boa Memória, chegou
a desafiar Fernando de Antequera para uma guerra conjunta contra Granada, o bastião
muçulmano que sobrevivia no Sul da Hispânia, mas o regente de Castela não correspondeu
ao pedido, de tão atarefado que andava com a disputa pelo trono aragonês». In João Gouveia Monteiro e António
Martins Costa, 1415, A Conquista de Ceuta, Manuscrito, 2015, ISBN
978-989-881-804-1.
Cortesia de Manuscrito/JDACT