Abalou-me a um ponto que eu
julgaria impossível. In Fernando Pessoa
Aos Poucos
«(…) Quando ao tumulto do
mundo a tua alma que desabrocha dá ouvidos; quando à voz clamorosa da grande ilusão
a tua alma responde; quando se assusta ao ver as lágrimas quentes da dor, quando
a ensurdecem os gemidos da angústia, quando a alma se retira, como a tartaruga tímida,
para dentro da concha da personalidade, sabe, ó discípulo, que do seu Deus
silencioso a tua alma é um sacrário indigno. Quando, já mais forte, a tua alma vai
saindo do seu retiro seguro; quando, deixando o sacrário protector, estende o seu
fio de prata e avança; quando, ao contemplar a sua imagem nas ondas do espaço, ela
murmura: isto sou eu, declara, ó discípulo, que a tua alma está presa nas teias
da ilusão. Esta terra, discípulo, é a sala da tristeza, onde existem, pelo caminho
das duras provações, armadilhas para prender o teu eu na ilusão chamada a grande heresia.
Esta terra, ó discípulo ignaro,
não é senão a triste entrada para aquele crepúsculo que precede o vale da verdadeira
luz, essa luz que nenhum vento pode apagar e que arde sem óleo nem pavio. Diz a
grande Lei: … para te tornares o conhecedor
da personalidade total, tens primeiro de conhecer a personalidade. Para chegares
ao conhecimento dessa personalidade, tens de abandonar a personalidade à não-personalidade,
o ser ao não-ser, e poderás então repousar entre as asas da grande ave.
Sim, suave é o descanso entre as asas daquilo que não nasce, nem morre, mas é o
Aum através de eras eternas. Cavalga
a ave da vida, se queres saber. Abandona
a tua vida, se queres viver. Três salas, ó cansado peregrino, conduzem ao fim
dos trabalhos. Três salas, ó conquistador de Mara, te trarão através de três estados
até ao quarto, e daí até aos sete mundos, os mundos do descanso eterno.
Se queres saber os seus nomes, escuta-os e aprende-os. O nome da primeira
sala é Ignorância, Avidya. É a sala em que viste a luz,
em que vives e hás-de morrer. O nome da segunda sala é a Sala da Aprendizagem. Nela a tua alma encontrará as flores da vida,
mas debaixo de cada flor uma serpente enrolada. O nome da terceira sala é Sabedoria, para além da qual se estende o
mar sem praias de Akshara, a fonte indestrutível da omnisciência. se queres
atravessar seguramente a primeira sala, que o teu espírito não tome os fogos da
luxúria que ali ardem pela luz do sol da vida. Se queres atravessar seguramente
a segunda, não pares a aspirar o perfume das suas flores embriagantes. Se queres
ver-te livre das peias cármicas, não procures o teu guru nessas regiões mayávicas.
Os sábios não se demoram nas regiões de prazer dos sentidos. Os sábios não dão
ouvidos às vozes musicais da ilusão». In Helena Petrovna Blavatsky, The Voice of
The Silence, A Voz do Silêncio, tradução de Fernando Pessoa, Editorial
Presença, 2012, ISBN 978-989-8470-49-2.
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