A
sua última duquesa. Toscânia 1559
«(…) Podia estar à beira de
completar quinze anos, mas nesse dia tudo se conjugava para fazê-lo sentir-se
uma criança. Nessa tarde, quando ajudara Crezzi a levantar-se, à saída da
horta, de repente parecera-lhe bastante diferente. Tão crescida, apesar de ser
tão pequena e magra, e tão bonita, a situação fizera-o sentir-se desajeitado e
estúpido. Como se as mãos e os pés fossem grandes de mais e já não condissessem
com o resto. Em geral, nas idades deles, um ano e meio de diferença não se
notava tanto. Mas ela fizera-lhe aquela careta, como de costume, e tudo ficara
bem. E, agora Pietro..., tão confiante, a falar-lhe das suas conquistas. Não
era que tivesse grandes motivos para se gabar da última noite, Maria iria com
um qualquer. Ao aproximar-se da janela do quarto de Lucrécia, Giovanni parou. A
culpa é toda tua. Ouviu a voz dela nessa tarde. De quê? De tudo. Resfolegou e
chamou-a. Ficou à espera. Voltou a chamá-la. Seguiu-se um manuseamento dos
atilhos momentâneo e ruidoso e em seguida as duas portadas abriram-se e
embateram na parede. Lucrécia debruçou-se na janela, a fazer uma careta devido
à luz. Estou quase pronta. Não te vás embora, pediu ela. Giovanni anuiu,
mexendo a cabeça. Lucrécia perguntou: aconteceu alguma coisa? Ele encolheu os
ombros.
Espera! Ela meteu-se para dentro.
Giovanni ficou ali, com o peso do corpo assente num pé, a olhar para a janela.
Pouco depois, Lucrécia reapareceu, com um cestinho de palha numa mão e uma
corda comprida enrolada na outra. Debruçou-se, a morder o lábio inferior, e
começou a fazer descer o cesto. Giovanni levantou os braços e aparou-o;
espreitou lá para dentro e, apesar da atrapalhação, sorriu ao ver um nó de fita
cor de fogo, encaracolada como um pequeno lírio alaranjado. Retirou-o e começou
a brincar com ele. Não estragues isso!, ordenou Lucrécia. Puxou o cesto para
cima, ora com uma mão ora com a outra. É uma espécie de favor. Como se fosses um
cavaleiro. Eu..., eu estou a praticar para duquesa.
Giovanni fez uma vénia exagerada
e, com a cabeça quase encostada aos joelhos, ouviu um risinho vindo de cima.
Endireitou-se. Encontrei o meu cesto agora mesmo num velho baú. Lembras-te
dele?, gritou Lucrécia. Claro. Ele inclinou a cabeça para trás para a ver
melhor e o sol bateu-lhe nos olhos. Protegeu-os com a mão na horizontal. Depois
de o papá se zangar tanto daquela vez..., por causa do telhado. Não sabia que
ainda o tinhas. Nem eu. Mas foi uma boa partida, não foi? Giovanni olhou para
baixo e passou os dedos pela fita, recordando que ficara com o rabo a arder da
última vez que pegara naquele cesto. Lucrécia podia ter ficado fechada no
quarto, mas ele apanhara uma sova no dia em que os dois subiram ao telhado do
castelo, um acto imprudente e estúpido, tal era a sede de aventura de ambos. A
sugestão fora dela, que o admitira ao tio Cosmo, mas fora ele, Giovanni, a receber o castigo mais severo.
O sentimento de injustiça ainda
não se dissipara passados dois anos. No entanto, Crezzi tinha razão: fora uma
boa partida, a única ao alcance de ambos durante os três dias de clausura dela.
Ele procurara pequenos tesouros, roubara umas coisas da cozinha e pusera-as dentro
do cesto de Crezzi, que o içara e lhe mandara em troca umas mensagens tontas
escrevinhadas à pressa. Parecia que tudo aquilo se passara há muito tempo. Não
te vás embora..., disse Lucrécia. Desço já. A
voz dela parecia pastosa, como se tivesse estado a chorar, pensou Giovanni,
ou talvez mais como se tentasse não
chorar naquele momento. Por que seria? As portadas fecharam-se outra vez e
o canto das cigarras voltou a ouvir-se quando Giovanni se sentou, encostado à
parede, com os joelhos encolhidos e as mãos pousadas neles, a mexer e a remexer
no nó de fita cor de laranja». In Gabrielle Kimm, A sua Última Duquesa, O
que aconteceu a Lucrécia de Médici?, 2010, tradução de Maria Duarte, Planeta
Manuscrito, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-657-328-7.
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