«O licenciado António
Luís é mal conhecido e faz falta um estudo sobre a sua formação e
actividade como professor, investigador, cientista e filósofo. A primeira condição
para isso será a tradução da sua obra. Não digo apenas leitura por alto do seu
latim, nem sempre fácil, mas a tradução publicada, com o latim em face, para
que possa ser apreciada e discutida. Sem esta medida prévia, tudo quanto
continuar a ser escrito sobre António Luís, não passará de glosa inútil sobre o
que está dito. Alguns flagrantes da sua personalidade e hábitos podem colher-se
do Auto q se fez sobre o ldo ant° luys xpão nouo mor
a sã giã desta cidade de lixboa pso por ter liuros em hebraico 1539 mdo
soltar. Este Auto, cuja leitura foi feita pelo Mário Brandão, foi
publicado por iniciativa de Joaquim Carvalho. Recordemos. Foi o caso que nas
portas de algumas igrejas de Lisboa, como a Sé e a igreja do convento do Carmo,
apareceu uma carta de controvérsia judaica na qual se declarava, entre outras
coisas, que o Messias ainda não tinha chegado. Verificou-se que a letra parecia
de castelhano e foi interrogado o capelão da rainha dona Catarina, licº Rodrigo
Sánchez, castelhano, que não confirmou que a letra fosse de alguém nascido em
Castela.
Procurava-se um culpado, quando a
senhoria do licº António Luís resolveu denunciá-lo, dizendo q hu ant° lujs filho de mtre lujs fysiquo que
viue nas costas da egreia de sã giã... auya perto de dous anos pouco mais ou
menos q treladaua certos liuros -s- briuya de [grego] latym ë lingoajë. &
certos textos q elle dizia a ella testemunha. O marido da denunciante,
proprietária da casa onde vivia António Luís, era iluminador, e a
ele recorria o médico para lhe aguçar as penas de que se servia para escrever.
Por isso, ela esclarece: & q hos mais
dos domingos & dias santos pncipais pella menhã jazendo ella testa Ajnda na cama e dito seu marjdo trazia o dto
antº lujs penas haparar ao dto seu marjdo. & papell a Regrar que lhe durauã
pera toda a somana espver.
Toda a denúncia da mulher do
iluminador, além de pitoresca, é extremamente elucidativa. Ela submete o licº António
Luís a quem dava tratamento de filho, prova indirecta de que era ainda novo, a
um interrogatório de beata coscuvilheira e desconfiada. Eis como ela
caracteriza o seu inquilino: & q o
dto antº lujs se nomeaua p philosopho e grade letrado. & q ella testemunha
dissera ao dto Id0 aos domigos & festas quãdo vynha a Regrar o
papell & q lhe aparase as penas q fora mtas donde se ueria q
cada uez trazia hua dúzia duas dúzias & q ella ta lhe disera
como nã vsaua antes da fysica & ë vysitar seus doemtes asy como fezera seu
pay & q elle lhe Respondera q nã estimaua ne tynha de fazer cõ yso q
estimaua muis sua honrra & seu saber q nã a fysiqua. Esta denúncia é
confirmada pelo filho e pelo marido da denunciante.
A via para a Inquisição (maldita) tinha sido um
tal mestre Afonso, pregador, ao qual a senhoria de António Luís, acompanhada
por um criado que confirmou as suas declarações, viera consultar sobre a
conveniência de denunciar o inquilino. Então acrescentara que António
Luís espuja e grego & e
abrayco. & q era chamado o grande philosopho plos xpãos nouos & q era
grade ajutamto delles e sua casa. Como se vê, todas as acusações
visavam a fazer de António Luís um cristão-novo judaizante. Até o aparar das penas
era feito aos domingos e dias santos principais... O inquisidor João Melo,
desta vez, foi benevolente e a sentença saiu ligeira: Visto como as tas
se refere aos liuros & escritura que o R. podia ter feito e sua casa os
quaes forom achados catholicos & asi vista a èformação q de sua vida &
custumes foi tomada, mando q seja o R. Solto & p ter algíis liuros de
hebraico ë sua casa de sop.ta lhe
dou e penjtençia o tpo q esteue preso. J° De mello Inquisidor.
Esta sentença é de 21 de
Fevereiro de 1539. Creio que o João
Melo levou preso António Luís na noite em que com as varas da Justiça, entre as onze horas e meia-noite, lhe examinou
em casa livros e papéis. Isto passou-se a 10 de Fevereiro. Portanto, o lic°
António Luís deve ter estado preso uns onze dias. Por testemunhos e
declarações, insertos no processo, fica-se a saber que António Luís estudou em
Salamanca e que, entre os seus amigos de Lisboa, ao tempo que foi preso, se
contavam o leitor João de Barros, André de Resende, oquatrim & o padre frey brás. Num parecer em latim, o promotor
de Justiça que assina philippus, chama
aos amigos de António Luís uiri probatae
uitae. O processo mostra que António Luís era em 1539 solteiro, não exercia a Medicina e
se entregava a laboriosos trabalhos de investigação. Desse mesmo ano de 1539, é um livro em latim, escrito em
louvor de João III e da expansão ultramarina dos portugueses, a Panagyrica
Oratio, em nossos dias mais nomeado do que lido. Todavia, está longe de
ser a sua obra mais importante. O autor declara solenemente que a Oratio,
embora publicada em 1539, fora
escrita anos antes, como me fez notar, Jorge Alves Osório. Mas a oportunidade
da publicação é óbvia». In Américo Costa Ramalho, António Luís,
Corrector de Erasmo, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de
Coimbra.
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