«Filipe, o Belo, morrera há seis
meses. A França devia ao governo desse monarca prodigioso os benefícios de um
longo período de paz, o abandono das desastrosas aventuras de além-mar, a
instalação de uma poderosa rede de alianças e de suseranias, aumentos notáveis
do território por uniões e não por conquistas, uma expansão económica certa,
uma relativa estabilidade da moeda, a não ingerência da Igreja nos negócios temporais,
o refreamento das potestades do dinheiro e dos grandes interesses privados, o
acesso das classes populares aos conselhos do poder, a segurança dos cidadãos,
a organização da autoridade do Estado. Por certo, os contemporâneos não tinham
de tal modo consciência deitadas essas melhorias. Jamais progresso quis dizer
perfeição. Houve anos menos prósperos que outros, períodos de crise e de
revolta; as necessidades populares estavam longe de serem satisfeitas. O Rei de
Ferro tinha certa maneira de se fazer obedecer que não agradava a todos e
ocupava-se mais com a grandeza de seu reino que com a felicidade particular de
seus súditos.
Não obstante, quando ele desapareceu, a França era a primeira, a mais
forte, a mais rica de todas as nações do mundo ocidental. Não foram precisos
menos de trinta anos de perseverança aos seus sucessores para destruir-lhe a
obra e a ambição desmedida revezando-se no trono com o excesso de incapacidade, franquear o país à invasão, entregar a sociedade à anarquia e reduzir o
povo à mais baixa situação de miséria e desespero. Na longa série de vaidosos imbecis
que, de Luís X, o Turbulento, a João, o Bom, inclusive, irão usar
a coroa, um único fará excepção: Filipe V, o Longo, segundo filho de
Filipe, o Belo, que retomou os princípios e os métodos do pai, malgrado a vontade de reinar o tivesse
levado a auxiliar crimes e a criar leis dinásticas que deram, como resultado, a
Guerra dos Cem Anos.
A empreitada de demolição vai, pois, prosseguir durante um terço de
século, mas devemos reconhecer que desde os primeiros seis meses boa parte do
trabalho já tinha sido feita. As instituições não estavam bastante consolidadas
para poder funcionar sem a intervenção pessoal do soberano. O fraco, o nervoso,
o incompetente Luís X. esmagado pela sua tarefa desde o primeiro dia,
descarregava facilmente os cuidados do poder em seu tio Carlos de Valois, bom,
militar, parece, mas político detestável, que em vão passara a vida toda
correndo atrás de um trono, e cuja turbulência sediciosa encontrava agora onde
se empregar. Os ministros burgueses que tinham feito a força do reinado
precedente, estavam presos, e o esqueleto do mais notável dentre eles,
Enguerrand de Marigny, antigo assistente geral do reino, secava nos ganchos do
cadafalso de Montfaucon.
A reacção triunfava; as ligas baroniais semeavam a desordem nas
províncias e colocavam em xeque a autoridade real. Os grandes senhores, a
começar por Carlos de Valois, fabricavam moedas, que punham em circulação
através de todo o território para seu proveito pessoal. A administração,
entregue a si mesmo, pilhava por seu lado, e o Tesouro estava vazio. Uma colheita
desastrosa, seguida de um Inverno excepcionalmente rigoroso, criara uma fome
geral. A mortalidade aumentara. Durante esse tempo, Luís X preocupara-se
sobretudo com restaurar sua honra conjugal e apagar, se fosse possível, o escândalo
da torre de Nesle. Na falta de um papa, que o conclave não conseguira eleger, e
que teria podido decretar a anulação de seu casamento, o jovem rei de França,
para poder casar-se novamente, mandara estrangular a esposa, Margarida de
Borgonha, na prisão do Castelo Gaillard. Tornara-se, assim, livre para desposar
a bela princesa napolitana que lhe tinham destinado e com a qual se dispunha a
partilhar as felicidades de um longo reinado.
A
França esperava uma rainha. Adeus a Nápoles
Em
pé, junto a uma das janelas do enorme Castelnuovo, de onde a vista dominava o
porto e a baía de
Nápoles, a velha rainha-mãe
Maria da Hungria olhava um navio prestes a zarpar. Assegurando-se de que ninguém podia notar-lhe o gesto, enxugou, com um
dedo ríspido, as lágrimas que lhe vinham às pálpebras sem cílios. Bem, agora
posso morrer, murmurou. Tinha
empregado bem a sua vida. Filha de rei, esposa de rei e avó de reis, firmara
parte de sua descendência no trono da Itália meridional, enquanto obtinha para
a outra, à força de lutas e intrigas, o reinado da Hungria, que considerava
como sua herança pessoal. Seus filhos mais moços eram príncipes, ou duques
soberanos. Duas de suas filhas eram rainhas, uma em Maiorca, outra em Aragão.
Sua fecundidade havia sido um instrumento de poder para os Anjou-Sicília, esse
ramo mais novo saído da árvore capetiana, que começava a estender-se sobre toda
a Europa e ameaçava tornar-se tão grande quanto o tronco. Se Maria da Hungria
já perdera seis
filhos, tivera, ao menos,
o consolo de terem morrido piedosamente, como os havia educado; um deles,
mesmo, aquele que renunciara aos direitos dinásticos para professar, cedo fora
canonizado. Como se os reinos deste mundo se tivessem tornado muito pequenos
para esta família tentacular, a velha
rainha estendeu sua progenitura até o reino dos céus. Ela era a mãe de um santo. Setenta anos passados,
restava-lhe apenas assegurar o futuro de uma de suas netas, a órfã Clemência.
Isso já era, aliás, facto consumado». In Maurice Druon, Os Venenos da
Coroa, 1956, tradução Alcântara Silveira, colecção Cavalo de Tróia, Gótica,
2006, ISBN 978-972-792-165-2.
Cortesia
de Gótica/JDACT