terça-feira, 22 de setembro de 2015

Diálogo com a Morte. Marie Hennezel. «Contemplo Bernard à luz um tanto fosca da lâmpada de cabeceira. Tem os olhos muito abertos, mas não me vê. Grandes olhos fixos, que a magreza do rosto torna quase aterradores»

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«(…) Falámos muito da sua vida, dos amigos comuns, e também da sua morte, que ele aguardava agora com um misto de curiosidade e alívio. Ofereceu-me uma pulseira de prata velha, encontrada numa rua no Sul do Egipto, e que ele estimava infinitamente, dizendo-me: é altura de dar os meus objectos preferidos a todos aqueles que amo. Sem dúvida que é graças a esse dia, que no fundo nos permitiu dizermos adeus um ao outro, que eu posso agora estar a seu lado, sem esperar nada de especial, com o coração em paz, saboreando no segredo da minha alma o incrível presente dos seus últimos momentos como presença viva. Porque o diálogo continua, embora a outro nível. É-me difícil exprimir algo dessa alegria íntima e secreta. Pois, vista do exterior, ela pode parecer triste, mesmo deprimente, uma vigília sem correspondência aparente, tão lenta, tão longa. Tudo é tão subtil, tão fino. E eu sinto-o tão presente. Ontem, por exemplo, demos-lhe banho. Sim, uma hora de bem-estar para aquele corpo entorpecido, rígido de imobilidade, tão magro, tão descarnado. Uma hora de afeição e ternura partilhada com Michèle, a enfermeira, e Simone, a auxiliar. Com que doçura infinita rodeámos aquele corpo finalmente entregue com confiança ao calor do banho! Três mulheres amantes ocupadas nessa tarefa, de entre todas sagrada, que é o cuidado dedicado ao corpo de um moribundo. Porque existe uma maneira de cuidar do corpo que faz que se esqueça precisamente que se trata de um corpo arruinado, pois é a pessoa, na sua integridade, que se envolve de ternura. Existe uma maneira de cuidar de um moribundo que lhe permite sentir-se uma alma viva até ao fim.
Foi assim que Bernard, que parecia tão exausto, já tão distante de nós, como que acordou de um longo sono para depor um breve e doce beijo nas costas da minha mão. Que alegria eu senti! Como é que aquele simples gesto me pôde embalar assim? Sentia-me leve, feliz, viva. Um beijo muito breve numa mão molhada, último sinal de afeição de um moribundo no seu banho. Sabes, a amizade foi a coisa mais importante para mim, são as primeiras palavras de Bernard passadas vinte e quatro horas. Palavras apenas audíveis abrindo um caminho difícil através de um corpo esgotado, exânime. São também, mas eu só mais tarde o saberei, as suas últimas palavras.
É noite. Decidi passá-la junto de Bernard. Reina a calma no serviço. A enfermeira, pequena e rechonchuda, cheia de vitalidade e juventude, acaba de me trazer uma tisana. Sentou-se a meu lado, tão delicadamente. Uma maneira de me dizer: estou aqui, acompanho-te. As nossas cabeças tocaram-se por um momento, e eu senti abordar as lágrimas, aquelas lágrimas que nos fazem bem, que aliviam o coração. Aqueles que têm um gesto espontâneo de compaixão sem dúvida não sabem o bem que fazem. Incitam, sem sequer saber, aqueles que assim tocam a abandonar-se confiadamente aos movimentos das suas almas. Sim, sinto pena. Por que não reconhecê-lo?
Contemplo Bernard à luz um tanto fosca da lâmpada de cabeceira. Tem os olhos muito abertos, mas não me vê. Grandes olhos fixos, que a magreza do rosto torna quase aterradores. O seu peito descarnado, soerguido por uma respiração ruidosa e caótica, e a minha mão tão suave quanto possível a tentar apaziguar-lhe a violência. Os estertores dilacerantes, quando a garganta se bloqueia, e a incerteza do que convêm fazer: chamar a enfermeira que vai introduzir uma sonda e aspirar os mucos que se acumulam agora regularmente na traqueia? Impor assim essa última agressão, necessária, todavia, se queremos evitar a asfixia?
Nunca senti, de modo tão pungente, a impotência perante a necessidade de aplicar uma técnica dolorosa. Que posso fazer senão envolver Bernard com toda a minha imensa ternura por ele, enquanto a enfermeira actua? E em seguida massajá-lo, acariciá-lo docemente para que volte a encontrar a calma. Às vezes ponho a tocar a Ave-Maria de Schubert, e a voz cálida de Jessie Norman, de que Bernard tanto gosta, envolve-nos a ambos. A noite decorre assim lentamente, entrecortada por esses momentos de tortura incontornável. Bernard está prestes a morrer, eu sei, há dezoito meses que se prepara para isso. Porquê esta agonia?» In Marie Hennezel, Diálogo com a Morte, Editorial Notícias, colecção Ciência Aberta, Lisboa, 1997/2002, ISBN 972-460-793-3.

Cortesia de ENotícias/JDACT