«No início do século XIV, Filipe IV, rei de
uma beleza lendária, reinava sobre a França como senhor absoluto. Tinha vencido
o orgulho guerreiro dos grandes barões, vencido os flamengos revoltados,
vencido o inglês na Aquitânia, vencido até o papado, instalando-o à força em
Avignon. Os parlamentos estavam às suas ordens, e os concílios a seu soldo. Tinha
três filhos maiores, para assegurar a sua descendência. Sua filha casaracom o
Rei Eduardo II, da Inglaterra. Entre seus vassalos, contava com seis outros reis,
e a rede de suas alianças estendia-se à Rússia. Riqueza alguma escapava à sua
mão. Tinha, sucessivamente, taxado os bens da Igreja, espoliado os judeus,
golpeado o truste dos banqueiros lombardos. Para fazer frente às necessidades
do Tesouro, procedia à alteração das moedas: da noite para o dia o ouro pesava
menos e custava mais caro. Os impostos eram esmagadores, e a polícia,
superabundante. As crises económicas engendravam ruínas e fome, que por sua vez
suscitavam motins, sufocados no sangue. As revoltas terminavam nas traves dos
patíbulos. Diante da autoridade real, tudo teria de inclinar-se, dobrar-se ou romper-se.
A ideia nacional instalara-se na cabeça daquele príncipe calmo e cruel. No seu reinado,
a França era grande e os franceses sentiam-se infelizes. Um único poder ousara
enfrentá-lo: a soberana Ordem dos Cavaleiros do Templo. Esta organização
colossal, ao mesmo tempo militar, religiosa e financeira, devia às Cruzadas a sua
glória e riqueza. A independência dos templários inquietou Filipe, o Belo,
ao mesmo tempo que seus bens imensos excitavam-lhe a cobiça. Instaurou contra
eles o mais vasto processo de que a história tem memória, pois tal processo
atingiu cerca de quinze mil acusados. Todas as infâmias foram ali perpetradas.
E isso durante sete anos. Ao termo do sétimo, começa nossa narrativa.
A Maldição. A
rainha sem amor
Um
tronco inteiro, deitado sobre um leito de brasas incandescentes, ardia na
lareira. Os vitrais esverdeados, recortados de chumbo, coavam um dia de Março,
avaro de luz. Sentada numa cadeira alta, de carvalho, em cujo encosto apareciam
os três leões da Inglaterra, a Rainha Isabel, esposa de Eduardo II, o queixo sobre
a palma da mão, os pés repousando numa almofada vermelha, contemplava vagamente
os reflexos da lareira, sem realmente os ver. Tinha vinte e dois anos, bela tez
clara, perfeitamente lisa, cabelos de ouro arranjados em trancas longas e
levantadas como as asas de uma ânfora de cada lado do rosto. Ouvia uma das
damas francesas ler-lhe um poema do duque Guilherme da Aquitânia:
Do
amor não devo mais dizer bem
pois
que dele não tenho pouco nem rem,
já
que não tenho quem me convém...
A
voz cantante da dama leitora perdia-se naquela sala demasiado grande para permitir
a uma mulher viver feliz:
Depressa,
irei para o exílio,
com
medo grande, e grão perigo...
A rainha sem amor suspirou. Como são belas essas
palavras, disse, e parecem mesmo feitas para mim. Ah! Já não estamos no tempo
em que os grandes senhores, como o duque Guilherme, eram tão destros nas
poesias quanto na guerra. Quando me dissestes que ele viveu? Há duzentos anos!
Qualquer um juraria que isso foi escrito ontem! E repetiu, para si própria:
Do
amor não devo mais dizer bem
pois
que dele não tenho pouco nem rem...
Ficou
pensativa por algum tempo. Devo prosseguir, senhora?, perguntou a leitora, com
o dedo pousado sobre a página ornada de iluminuras. Não, minha amiga, respondeu
a rainha. Por hoje já fiz chorar suficientemente a alma... Endireitou-se,
mudando de tom. Meu primo Roberto d’Artois anunciou-me a sua visita.
Providencie para que seja introduzido assim que chegue. Vem da França? Então,
será para vós uma alegria, senhora. É o que espero..., se as notícias que me
trouxer forem boas. Uma porta se abriu e outra dama francesa entrou, toda
esbaforida e erguendo um pouco as saias para correr melhor. Chamava-se, pelo nascimento,
Joana Joinville, e era esposa de sir Rogério Mortimer. Senhora, senhora, exclamou
a dama. Ele falou. Realmente?, perguntou a rainha. E que disse? Bateu na mesa,
senhora, e disse: Eu quero!
Uma expressão de orgulho passou pelo bonito rosto de Isabel. Traga-mo, disse
ela.
Lady Mortimer saiu, sempre
correndo, e voltou um instante depois, trazendo uma criança de quinze meses,
redonda, rosada e gorda, que depositou aos pés da rainha. Era um menino,
vestido com um traje carmesim bordado a ouro, mais pesado do que ele próprio. Então,
senhor meu filho, dissestes: Eu quero!, falou Isabel, curvando-se para
acariciar-lhe o rosto. Agrada-me que tenham sido essas as vossas primeiras
palavras: são palavras de rei. O menino sorria para ela, sacudindo a
cabeça de lá para cá. E por que foi que ele disse isso?, perguntou a rainha. Por
que lhe recusei um pedaço do bolo que estávamos comendo, respondeu lady
Mortimer. Isabel esboçou um sorriso, depressa apagado. Já que começa a falar,
disse ela, peço que não o animem a tartamudear e a pronunciar tolices, como é
de hábito fazer com as crianças. Pouco me importa que ele saiba dizer pai e mãe.
Prefiro que conheça as palavras rei e
rainha. Isabel tinha na voz grande
autoridade natural.
A senhora sabe, minha amiga,
continuou, quais foram as razões que me levaram a escolhê-la para governanta de
meu filho? Sois neta do grande Joinville, que participou das cruzadas com nosso
bisavô, senhor São Luís, e sabereis ensinar a esse menino que ele pertence à
França, tanto quanto à Inglaterra. Lady Mortimer inclinou-se. Nesse momento a
primeira-dama francesa voltava, anunciando o conde Roberto d’Artois. A rainha
encostou-se bem erecta na sua cadeira e cruzou as mãos brancas sobre o peito,
numa atitude de ídolo, com aquela preocupação de sempre lembrar seu sangue
real, que não conseguia envelhecê-la. Um passo com duzentas libras de peso
abalou o soalho. O homem que entrou tinha seis pés de altura, coxas que
pareciam troncos de carvalho, mãos iguais a maças. Suas botas vermelhas, de
couro cordovês, estavam manchadas de uma lama que não fora de todo escovada. O
manto que lhe pendia dos ombros era tão grande que dava para cobrir um leito, e
teria sido suficiente que ele arvorasse uma adaga à cinta para dar a impressão
de que estava indo para a guerra. Quando tal homem aparecia, tudo em torno dava
a impressão de se tornar mais fraco, friável e frágil. Tinha o queixo redondo,
o nariz curto, a mandíbula larga, o estômago robusto. Precisava, para respirar,
de uma quantidade maior de ar que a exigida pelo comum dos homens». In Maurice
Druon, Os Reis Malditos, O Rei de Ferro I, 1965, tradução de Nair Lacerda, Gótica,
colecção Cavalo de Tróia, 2006, ISBN 978-972-792-159-1.
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