«(…) Quando, no princípio do Canto XVI,
Pátroclo se prepara, vertendo lágrimas
escaldantes, para lhe pedir que o deixe ir, com os Mirmidões, em socorro
dos outros Aqueus, a primeira pergunta do herói é se terão vindo algumas
notícias tristes da Ftia; mas logo procura tranquilizar-se:
Mas está ainda vivo, ao que se diz, Menécio,
filho de Actor,
e vivo está Peleu Eácida entre os Mirmidões;
de ambos esses nos afligiria a morte, acima
de tudo.
Este valor supremo da amizade encontra
paralelos mais esbatidos na relação entre os dois jovens príncipes da Lícia,
Glauco e Sarpédon, na cena patética em que o primeiro suplica a Apolo que o
cure dos seus ferimentos, para impedir que o cadáver do segundo caia nas mãos
dos Aqueus, ou mesmo na bonomia do símile em que os dois Ajantes, na sua
actuação sempre concertada, são comparados a uma junta de bois que nunca se
afastam um de outro; ou ainda na dedicação fraternal entre os dois Atridas, quer
na ocasião em que Agamémnon, na aflição de ver Menelau ferido, lhe pega na mão
a soluçar e só descansa quando Macaão vem tratá-lo, quer quando o rei de
Esparta chega à assembleia dos chefes mesmo sem ser preciso chamá-lo, pois sabia no seu coração que o irmão estava
a sofrer. Voltando a Aquiles, e reafirmando a ausência de conotações eróticas
na sua relação com Pátroclo, as quais, tanto quanto sabemos, não entraram no
mito anteriormente ao século V a.C., será a altura de perguntar qual a
natureza, e sobretudo a profundidade dos seus sentimentos para com Briseida, e
desta para com ele.
A revelação é feita aos poucos,
discretamente, e no momento relevante, como é característico da arte homérica.
Assim, quando os arautos de Agamémnon vão buscar Briseida à tenda de Aquiles, estão
presentes, além daqueles, que não ousam sequer falar, Pátroclo, que cumpre as
ordens do amigo, de entregar a jovem, e o próprio Aquiles. Apenas a voz deste
se ouve, após o que:
… Pátroclo obedeceu ao seu querido
companheiro.
Trouxe para fora da tenda Briseida de rosto
formoso,
e entregou-a. Eles seguem ao longo das naus
dos Aqueus.
Com eles avança a mulher, mau grado seu…
Mau grado seu, em grego, uma única palavra, que
diz tudo. Só iremos ver de novo Briseida, e agora ouvi-la também, na sua
lamentação ao avistar o cadáver de Pátroclo, que beija a chorar, lembrando,
como tantos outros, a sua doçura. Fora ele que a consolara, no próprio dia em
que principiara o seu cativeiro, prometendo-lhe que Aquiles faria dela sua
esposa legítima e a levaria para a Ftia. Uma vã consolação, poderá
perguntar-se? A resposta está no discurso com que Aquiles replica a Ulisses,
por ocasião da embaixada por este conduzida:
Será que dentre os homens mortais somente os
Atridas
amam as suas esposas? Ora todo o homem de
bem e com senso
ama a sua própria mulher, e com ela se
preocupa; tal como
eu a amava a ela de
todo o coração, apesar de ser uma cativa.
Embora haja outras interpretações, julgo que
os sentimentos pessoais de Aquiles já estavam a descoberto desde o momento do
Canto I em que, a seguir à partida de Tétis, se diz que ele ficara irado, a pensar na mulher de bela cintura.
O passo do Catálogo das Naus em que se refere a inactividade do herói e as
razões que a determinam confirmam a existência deste tipo de motivação para o
afastamento do combate. Lugar de primeiro plano ocupa, no entanto, o amor
conjugal vivido em toda a sua plenitude. É o caso daquele que tem por
protagonistas Heitor e Andrómaca. Num dos passos mais célebres do poema, o herói
de casco faiscante, que fora a Tróia
pedir à mãe que fizesse súplicas e oferendas a Atena, tal era a gravidade da
situação do exército troiano, dirige-se a casa, à procura da mulher e do filho,
pois não sabe se poderá tornar a vê-los. Encontra Andrómaca na muralha, nas
Portas Ceias, perscrutando, ansiosa, o campo de batalha. Logo que o avista, vem
ao seu encontro, seguida da ama com o filho nos braços. Ao ver a criança,
Heitor sorri em silêncio. Andrómaca detém-se a chorar, junto dele. A cena vai
decorrer, precisamente, entre risos e lágrimas, as duas faces da expressão dos
sentimentos que unem os dois esposos em volta da figura da criança, semelhante a uma formosa estrela.
Andrómaca implora-lhe que se lembre dela e do filho, pois em breve os Aqueus o derrubarão,
impiedosos, e então:
…melhor seria para mim,
de ti privada, ir para debaixo da terra...
In Maria Helena Rocha Pereira, Amizade, Amor
e Eros na Ilíada, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.
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